Opinião. O que será que faz a gente continuar migrando?
Como bem ponderou minha amiga, será que os imigrantes desenvolvem as habilidades das aves migratórias? Seriam orientados pelas estrelas e regidos pelo instinto?
Texto: Cristina Fontanelle
Uma amiga brasileira que mora no Canadá me questionou esses dias: “O que será que faz a gente continuar migrando?”. A pergunta já deriva das várias impressões que vimos partilhando ao longo dos anos sobre a experiência de residir em outro país. Um diálogo que vem evoluindo junto com nossas vivências e fases da vida. Ela casou, teve uma filha, e isso também é ponto de virada nas decisões.
Lembro-me de que há quinze anos conversávamos pela primeira vez sobre a vontade dela de viver fora do Brasil. Na época eu só imaginava como seria, não tinha a ideia enraizada como possibilidade para mim. A amiga, entretanto, já pesquisava sobre sistema de pontos, teste de proficiência de idioma, profissões mais requisitadas naquele país. Ela se planejou e há treze anos mora nas terras gélidas. Além dessas reflexões, ser imigrante é também ouvir perguntas frequentes, como:
“Então, já está totalmente adaptada?”
“Vai ficar em definitivo?”
“Gosta de morar aqui?”
“Pensa em voltar para o Brasil?”
O aprendizado tem mostrado que respostas taxativas podem ser uma armadilha. Para sempre, totalmente, nunca mais, de uma vez por todas, em definitivo, são expressões que nos amarram. Geram um pacto fixo com a natureza do ser humano que é o movimento.
Hoje a pessoa está nestas condições, sob este recorte de tempo, vivendo de determinada maneira. Pode ser que amanhã a perspectiva mude, os sonhos atualizem para algo, antes, improvável. Podemos ser categóricos nos valores que nos regem e dinâmicos nas escolhas que tomamos. Ir, voltar, parar, repensar, o compromisso é consigo mesmo.
“Penso sempre nos pássaros e em seus movimentos. Mas, como humana que sou, confesso que, muitas vezes, ainda me pego pensando nas mudanças internas e externas. Será que esse sentimento está associado com o perfil do imigrante?”, continua a reflexão da amiga.
Comecei eu também a pensar nas aves, a observar seus voos corajosos e os motivos que as levam a migrar. Segundo os pesquisadores, a questão é, sobretudo, pela sobrevivência. A busca por condições mais favoráveis para comida e reprodução.
Nem todas as aves têm o instinto migratório, assim como as pessoas, mas as que têm reconhecem pistas ambientais que provocam essas viagens. Sabem quando ir e quando voltar. São guiadas por mecanismos como relógio biológico, orientação celestial (estrelas, lua, sol), campo magnético da terra, memória e aprendizado.
Como bem ponderou minha amiga, será que os imigrantes desenvolvem as habilidades das aves migratórias? Seriam orientados pelas estrelas e regidos pelo instinto?
Em recente evento literário conheci uma médica moçambicana, pois um imigrante logo se conecta com outro imigrante. Ela morou na Espanha, veio para Lisboa e sente o coração dividido entre os países. Não tardou muito e me fez a esperada pergunta: “Está totalmente adaptada?”. Em seguida sorriu, porque entende que imigrar, sentir-se em casa, criar vínculos, é um longo e infindável processo.
No decorrer do evento, olhamo-nos algumas vezes conversando com os olhos, naquela transmissão fina de pensamentos sobre quem reconhece outra ave migratória.
Como escreve o também moçambicano Mia Couto, em seu livro “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra”: “O importante não é a casa onde moramos. Mas onde, em nós, a casa mora.”
E temos sido uma boa morada?
Cristina Fontenele é escritora brasileira, com especialização em Escrita e Criação. Autora de "Um Lugar para Si - reflexões sobre lugar, memória e pertencimento”, além de jornalista e publicitária. Escreve crônicas há quinze anos e, como típica cearense, ama uma rede e cuscuz com café bem quentinho.
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