Opinião. O Outro Lado da Moeda é um Espelho
“Um imigrante, em uma nova cultura, perde parte de sua autonomia e de seu senso de pertencimento comunitário”.
Texto: Luisa Cunha
Chamem as caravelas de volta e desembarquem os espelhos! Precisamos olhar para nós mesmos. Peço perdão e licença aos movimentos de decolonialismo pela expressão inicial — tema de suma importância para outro artigo —, mas a relação entre brasileiros e portugueses, somada à capacidade de reflexão, seja nos espelhos dos outros ou em nós mesmos, faz-se fundamental nos dias de hoje.
Em meio a tantos embates sobre imigração e dedos apontados, me peguei remoendo sobre a importância da concepção que temos de nosso íntimo para nos posicionarmos na sociedade. Creio que, antigamente, antes da existência dos espelhos, das estruturas sociais complexas e dos fenômenos de imigração em massa, nossos antepassados ou possuíam uma grande certeza de seus valores e de sua imagem, ou confiavam plenamente no próximo para lhes dizer como eram ou aparentavam. O espelho — aqui descrito como nossa capacidade de reflexão interna ou como a figura do próximo com quem convivemos — é um objeto indispensável na bagagem quando o assunto é imigração.
Quando somos deslocados das imagens pré-moldadas que temos de família, amigos, nós mesmos e cidadania, o reflexo parece borrado; as linhas tornam-se cada vez mais tênues e confusas. E, naturalmente, o outro lado reflete um ser desamparado, desconhecido de si mesmo, que busca se ajustar a um "novo normal" cheio de distorções. Um imigrante, em uma nova cultura, perde parte de sua autonomia e de seu senso de pertencimento comunitário. Ele se encontra despido, nu diante de seu reflexo, confrontado com duas grandes questões: Quem sou eu agora? e Como essa nova sociedade me recebe?
Acredito que, ao solucionarmos a primeira questão, encontraremos respostas para ambas e para tantas outras, especialmente no caso da relação entre brasileiros e portugueses, cujas imagens são tão parecidas e, ao mesmo tempo, desconexas.
Não é à toa que Portugal abriga uma das maiores comunidades brasileiras — ou oriundas da CPLP — no contexto da imigração. Nós buscamos semelhanças ao imigrar. A língua, nesse caso, traz o conforto da comunicação e é um grande auxílio no processo de integração. Contudo, nessa busca incessante por conforto, acabamos nos integrando a pequenos grupos comunitários que mimetizam a sensação de "casa": nos trejeitos, no modo de receber, no sotaque. Mas até que ponto nos fecharmos na comunidade brasileira existente em Portugal é um desfavor não só para o processo de adaptação, mas também para a melhoria do entendimento entre imigrantes e nativos?
Uma pesquisa divulgada nesta semana revelou que 51% dos portugueses consideram alta demais a imigração de brasileiros no país. O que será que justifica esse pensamento negativo frente a outros irmãos linguísticos — como os angolanos, por exemplo —, que, na mesma pesquisa, apresentam índices mais baixos de rejeição? Até que ponto a exclusão não é uma via de mão dupla?
É aqui que entram os espelhos. Penso que nós, seres “desnorteados” e imigrantes em uma jornada de autoconhecimento longe da zona de conforto, podemos nos tornar retraídos, desconfiados, sensíveis e propensos ao isolamento diante do diferente. Tornamo-nos seres recôncavos, inclinados a nos agarrar ao porto seguro mais próximo. Não há como negar a existência da xenofobia contra brasileiros em Portugal. Mas a questão é: como podemos, enquanto grupo de imigrantes, contribuir para mudar essa imagem?
Se nosso reflexo é tão claro internamente, enquanto comunidade brasileira de imigrantes, por que não tentamos nos posicionar do outro lado da moeda e perceber que, às vezes, para quem já está na terra, também é difícil reconhecer-se através do “espelho do próximo” em uma sociedade cada vez mais diversa? Diante deste espelho social da vida em comunidade, precisamos buscar as semelhanças, não apontar as diferenças. Sei, pelo pouco tempo de vivência em Portugal, que brasileiros e portugueses compartilham, por exemplo, as mesmas rugas de preocupação com política, bem-estar social, justiça e humanidade, sem contar algumas marcas de nascença ainda mais interligadas.
Em uma comparação rápida, considerando dimensões e números, há no Brasil — com seu território de proporções continentais — 138 mil portugueses registrados (2024). Já nós, em Portugal, somos mais do que o dobro, somando uma comunidade de 368.449 imigrantes (2024) em um território que, figurativamente, no meu estado de origem no Brasil, caberia duas vezes e meia. Será mesmo que não temos influência na cultura portuguesa e na forma como gerimos essa integração?
Não há dúvidas de que saber receber é uma das máximas brasileiras. Somos receptivos e fazemos isso sem esperar nada em troca. Por que, então, não acolhemos de braços abertos a preocupação portuguesa quanto à imigração em grandes números? Compreender suas angústias — sem, claro, deixar de lutar contra os casos que extrapolam o debate e recaem em discriminação —, mas buscar somar à comunidade portuguesa esse traço cultural tão difundido dos brasileiros, em vez de transformá-lo em um ponto de distorção?
A grande certeza é: se, na frente do espelho, eu abro os braços, a tendência é que o reflexo imite o meu gesto. E se isso não acontecer, não se preocupe, pois não está diante de um espelho, e não vale a pena abraçar o vazio.
Portugal é um país intensamente acolhedor da cultura brasileira, e nós somos os vasos dessa riqueza aqui tão apreciada. É preciso assimilar os espelhos, internos e externos, e tomarmos as rédeas de nossa inclusão.
Em um exercício duplo, certos de quem somos e do que prezamos, dispostos a perceber que essa convivência intensa com o novo é uma sensação vivida por ambas as partes, precisamos aprender a ser, para além dos espelhos internos, reflexos uns dos outros, como irmãos que somos enquanto Brasil, Portugal e comunidade CPLP.
Sejamos reconvexos!
Luisa Cunha é advogada e imigrante brasileira radicada em Portugal há três anos. Coordenadora do Projeto "Duetos" e membro da equipa do FIBE, é pesquisadora nas áreas de direitos humanos, cooperação internacional e gestão de ONGs.