Opinião. Entre esquinas - A fragilidade dos rastros
"Mundo afora, pessoas sem abrigo utilizam o papelão para se protegerem, seja forrando o chão, cobrindo-se ou formando pequenas cabanas".
Texto: Cristina Tejo
"Esta Lisboa, que se pavoneia como uma dama de cetim em trapos brilhantes, é uma cidade em aparência majestosa, mas que, ao primeiro exame, se revela toda de papelão e ordinárias costuras." As Farpas (1871), Eça de Queirós
“A cidade não para, a cidade só cresce: o de cima sobe e o de baixo desce.”A Cidade(1994), Chico Science & Nação Zumbi
A figura do flanêur, conceituada por Walter Benjamin, é um dos ícones da cidade moderna e representativa de uma nova forma de experiência sensorial e perceptiva, mediada pelo ambiente urbano e pela mercantilização da sociedade, na Paris do Século XIX. Trata-se de um observador passivo, um andarilho que explora a cidade, especialmente pelas galerias comerciais, absorvendo suas contradições e resistindo ao ritmo acelerado da modernidade e ao consumo desenfreado, captando as transformações culturais, sociais e econômicas trazidas pela modernidade.
Apesar de Benjamin ter dissertado sobre o flanêur no período entre guerras, tendo a capital francesa como ponto de partida, esta tem sido uma referência constante até a atualidade. No entanto, num contexto lisboeta da segunda década deste século, com a aceleração de processos de gentrificação, precarização do mundo do trabalho e turistificação das cidades, quem é o flanêur contemporâneo? O que significa flanar atualmente por uma Lisboa instagramável? Quem pode flanar?
Desde 2018, Sonia Távora tem observado as transformações pelas quais a capital portuguesa tem passado. Os edifícios que acolhiam famílias por gerações tornando-se alojamento local, lojas centenárias dando lugar a comércio genérico, bairros inteiros virando cenários de consumo e “experiência”, dando a impressão de que Lisboa saltou abruptamente de uma economia do início do século XX para o neoliberalismo digital. Uma cidade à venda.
No projeto Entre esquinas – a fragilidade dos rastros – com vernissage hoje (16), no espaço independente NowHere, em Lisboa, onde fica em exposição até o dia 30 –, a artista representa a cidade fragmentada em painéis de papelão, elemento que embrulha as mercadorias, evidenciando o estado de cidade-produto. Ela ressignifica a técnica da xilogravura, usada em Portugal desde a Idade Média e levada ao Brasil pelos colonizadores, ao substituir a madeira pelo papelão. As monotipias em papel arroz são registros frágeis, oníricos, como rememorações.
Mundo afora, pessoas sem abrigo utilizam o papelão para se protegerem, seja forrando o chão, cobrindo-se ou formando pequenas cabanas. Apesar de em Lisboa a população desabrigada utilizar maioritariamente barracas de camping, a cidade de papelão de Sonia Távora é também uma metáfora deste aspecto social. A fragilidade de uma cidade que pode desabar a qualquer momento.
Cristiana Tejo é brasileira radicada em Lisboa há cerca de 10 anos, investigadora, curadora e co-fundadora do espaço independente NowHere.