Opinião. Após a Creche Feliz, vem o Pré-Escolar das Angústias?
"O pré-escolar da angústia é este espaço de incertezas. Não sabemos se haverá vaga, nem onde e nem quando."
Texto: Diogo Batalha
Viver fora do país em que nascemos é sempre uma experiência reveladora. Às vezes, nos deparamos com questões que achávamos já superadas por todas as sociedades do mundo. Noutras, temos a sensação de que o nosso país de origem ainda está no século XVIII.
Em Portugal, tenho este sentimento quando o assunto é educação. Se a minha filha - que é portuguesa - tivesse nascido um ano antes do que ela nasceu, teríamos que pagar pela educação infantil. É que foi somente em 2022 que as creches do país passaram a ser gratuitas. Uma pequena vitória, é verdade. Mas que revela um panorama maior da educação em Portugal: desde 1976, a Constituição portuguesa diz que a educação deve ser tendencialmente gratuita. E é justamente este "tendencialmente" que abre um leque de interpretações possíveis.
Acho até poético a educação ser “tendencialmente gratuita”. Deve ser praticamente a versão em juridiquês do Camões. Mas a realidade tem outras palavras bem concretas, como taxas, material escolar, livros e tudo o que transforma o adjetivo “tendencial” numa promessa de gratuidade que ainda está por vir.
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O mais curioso é que, no Brasil, embora a educação pública não seja perfeita, o conceito está claro na Constituição desde 1988: a educação é um direito gratuito e universal. Da creche à universidade, todos têm direito à educação, independentemente da classe social ou da condição econômica. Claro, se a qualidade do ensino deixa muito a desejar ou se a luta pela vaga nas universidades públicas é uma realidade cruel, este é um outro ponto. Mas está escrita ali, na Carta Magna, a promessa de um país mais justo, onde a educação não tem preço.
Mas aí surge outra questão tendencial: as creches se tornaram gratuitas, é verdade. Mas esqueceram de que também era preciso garantir vagas no pré-escolar. E a realidade tornou-se outra, com filas de espera intermináveis, salas lotadas e uma escassez de recursos adequados para as crianças. Situações que mais parecem um reflexo de um sistema educacional, de certa forma, ainda fragilizado.
No Brasil, os pais chegam a acampar em frente às escolas para garantir que seus filhos sejam matriculados. E é aí que a desigualdade começa a se solidificar: quando o acesso à educação de qualidade se torna um privilégio, não um direito. Minha filha, que no próximo ano terá 3 anos, deixará a Creche Feliz e passará ao que já chamo de Pré-escolar da Angústia. O pré-escolar da angústia é este espaço de incertezas. Não sabemos se haverá vaga, nem onde e nem quando. E ela não é uma exceção.
Em Portugal, o governo promete resolver a questão das 12.000 crianças* fora do pré-escolar. Como? Com mais crianças por sala, mais crianças em escolas privadas (pagas pelo Estado) e crianças passando ainda mais um ano na creche. Como se o tempo fosse algo a se pudesse esticar como uma goma, sem consequências. “Amanhã esta criança cresce. Hoje, não vai dar!”
É triste pensar que ela, com apenas dois anos e meio, aprende desde já - e meio sem querer - que é necessário lutar diariamente para garantir direitos. E olha que ela tem apenas 914 dias de vida. Mas talvez seja mais doloroso perceber que os seus direitos (e os das
outras crianças) mais parecem "direitinhos" — uma versão diluída e enfraquecida daquilo que deveria ser de todos, com igualdade e justiça.
As creches e o pré-escolar não são luxos. São as sementes do futuro. Quando deixamos que a educação se torne uma promessa, uma ideia "tendencial", com vale-cheque para os privados a voar e menos investimento numa escola pública de qualidade, então estamos abrindo mão do que realmente importa: o futuro das nossas crianças e o futuro de toda uma sociedade.
A educação não pode ser "tendencial". Não pode ser uma esperança vã ou uma promessa em letras pequenas de um contrato. Ela precisa ser concreta, imediata, e acessível para todos. Sem exceções.
Quando criança, aprendi na escola aquele ditado “Só se colhe aquilo o que se planta”. Foi assim que eu entendi que, se alguém plantar maçãs, nunca irá colher pêras. Porque o futuro não é tendencial. Ele é - e sempre será - exatamente o que semeamos hoje. Seja no Brasil ou em Portugal.
*Número citado no Diário de Notícias em 5 de Novembro de 2024
Diogo Batalha é redator há quase duas décadas (e desde 2015 vive em Portugal). É aracajuano desde que nasceu e detesta que não saibam onde Aracaju fica no mapa. Pai de uma pequena portuguesa, tenta achar palavras para explicar até mesmo o que ainda não consegue compreender.