Opinião. A língua como casa
"A língua é esse lugar afetivo e de pertencimento, um ponto de resistência para o imigrante".
Texto: Cristina Fontenele
Em outubro estive em Paris para compromissos literários e pude conhecer outros brasileiros e seus desafios na integração à comunidade francesa. Entre crepes, petit gâteau e macarons, ouvi sobre xenofobia, atrito cultural, solidão e sobre a saudade de escrever na língua materna. Relatos típicos da jornada imigrante, um pouco diferente daquela vivida por Emily em Paris.
A última vez que visitei a capital francesa foi em 2017, viagem que virou uma das crônicas do meu livro “Um Lugar para Si”. Na época, encontrei uma Champs-Élysees ocupada por inúmeras pessoas em situação de rua, abordagens incisivas nos pontos turísticos e uma sensação de inquietude. Sete anos depois, Paris segue frenética, com transportes que exigem atenção redobrada (para não se perder e para não ser alvo dos pickpockets) e continua como o principal destino urbano do mundo, segundo dados do Euromonitor.
Paris conserva-se glamourosa e cara. Uma metrópole intensa assim como o humor dos seus cidadãos.
Conviver com os brasileiros radicados ajudou a me aclimatar mais rapidamente e a viver oportunidades diversas. Afinal, os que chegam primeiro abrem caminho e possibilidades. E são muitos os conterrâneos por lá. De acordo com o relatório “Comunidades Brasileiras no Exterior”, do Ministério das Relações Exteriores (Brasil), estima-se que em 2023 havia 95 mil brasileiros morando na França, com destaque para as regiões de Paris e Marselha.
Em conversa com um grupo de escritores, com distintas dinâmicas de trabalho, ouvi a seguinte frase: “Como eu estava com saudade de escrever em português”. Ali, refleti sobre como a língua é esse lugar afetivo e de pertencimento, um ponto de resistência para o imigrante. Por viver em Portugal e escrever em português (a despeito do controverso debate sobre variantes), ainda não tinha parado para avaliar o que era, enquanto escritor, exprimir-se, na maior parte da rotina, em outro idioma.
Perguntei à colega escritora que já vive em Paris há onze anos o que simboliza a escrita na língua materna. Ela respondeu quase como prosa poética: “Escrever em português me conecta com quem eu fui, com as pessoas que eu deixei. É a língua onde a gente se sente em casa.”.
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A língua como casa. A nossa forma de ser e estar no mundo, de ocupar lugares, transmitir histórias, resistir e criar. A língua como revolução.
A colega contou que fez vários cursos de escrita em francês na busca de aplacar a sensação de viver entre dois mundos. Tinha o sentimento de não conseguir se desapegar da língua materna. Atitude comum a muitos imigrantes na busca pelo pertencimento - esquecer, apagar, neutralizar para poder viver o novo. “Eu aceitei essa condição: nem lá, nem aqui. Tenho pensado numa identidade meio plástica que abraça todas as línguas e experiências que eu vivi”, revelou.
Saí da conversa imaginando uma escultura fluida, disforme e complexa. Estendi a análise para a língua também falada e lembrei de amigas brasileiras que estão casadas com pessoas de outras nacionalidades. Aproveitei para perguntar se lhes faltava algo, se sentiam incompletude ao tentarem se comunicar com o parceiro em outra língua. A que está casada com um italiano confessou que, apesar de falar fluentemente o idioma, nas horas mais “acaloradas”, quando precisa defender um ponto de vista, por exemplo, parece que “as emoções devolvem a língua-mãe de volta para a boca”.
Já a outra amiga casada com um holandês explicou que, em geral, sempre conseguiu expressar sentimentos e ideias. Quando não, recorria a sinônimos e a um bom dicionário. No final, prevaleciam gestos e olhares, a chamada linguagem universal do amor. “Atitudes são mais importantes que palavras.”, disse.
Elas me lembram que a língua é dinâmica e lúdica e se completa com os outros sentidos criando novas memórias. A língua é país, estado, comida e casa.
Cristina Fontenele é escritora brasileira, com especialização em Escrita e Criação. Autora de "Um Lugar para Si - reflexões sobre lugar, memória e pertencimento”, além de jornalista e publicitária. Escreve crônicas há quinze anos e, como típica cearense, ama uma rede e cuscuz com café bem quentinho.