Opinião. A cultura para atravessar a fronteira (da dificuldade de consenso)
Vivemos a era dos egoísmos: perdeu-se a habilidade da escuta ativa, de abrir-se à ideia e à experiência contrária. Resta-nos a cultura dos “comebacks”, dos discursos “virais”, dos dados empíricos e das realidades irrefutáveis.
Texto: Luisa Cunha
“Cultura é o que fica depois de se esquecer tudo que foi aprendido.” Em meio ao turbilhão de notícias diárias sobre imigração, assombra-nos a constatação de que a habilidade de dialogar foi perdida no abismo da polarização política. Que cultura será essa que nos resta? Guardaremos apenas as histórias e os contos de uma época em que imperava o senso de comunidade? Como poderemos não só resolver a questão das migrações, mas também atingir uma real integração entre imigrantes e nacionais, se não sabemos dialogar?
Vivemos a era dos egoísmos: perdeu-se a habilidade da escuta ativa, de abrir-se à ideia e à experiência contrária. Resta-nos a cultura dos “comebacks”, dos discursos “virais”, dos dados empíricos e das realidades irrefutáveis. Estabeleceu-se a ordem do embate disfarçado de debate: somos nós contra eles, nossos direitos e os direitos deles. Amigos? Sim, amigos. Mas com fronteiras à parte. Corremos diariamente o risco de nos tornarmos seres pobres, confortavelmente deitados na comodidade de partilhar nosso entorno apenas com quem se parece conosco e pensa da mesma forma.
Pobres, pois a riqueza do mundo está – e sempre esteve – no encontro das diferentes identidades culturais. Imaginem se o entrudo não tivesse desembarcado no Brasil junto com as naus portuguesas, deixando o mundo órfão do espetáculo do carnaval. Ou se o samba não tivesse encontrado, junto ao fado, inspiração para transmutar tristeza em beleza e, se ambos não tivessem viajado além-mar unindo duas nações a 7.000 quilômetros, ao ritmo da língua portuguesa. Identidades essas que, é preciso entender, ultrapassam romances policiais, poemas de Pessoa, fados nacionais e sambas monumentais.
A cultura é a consciência partilhada de um povo, sendo capaz de moldar o alter ego cidadão, infiltrando o pensamento individual com valores de pertencimento e partilha. E, para o projeto Duetos - Diálogos Além-Mar, a cultura é a solução para construir um espaço de debate orientado pela busca conjunta de respostas para os desafios da humanidade – como a imigração.
Conhecido carinhosamente como Duetos, o projeto é uma das iniciativas da associação sem fins lucrativos Fórum de Integração Brasil Europa - FIBE, entidade que se recusa a aceitar que restem apenas histórias e contos de um tempo em que imperava o senso de comunidade. Carregando no nome o objetivo de integração, o FIBE promove espaços para troca de conhecimento e debate, e tem como missão unir Brasil, Portugal e os países da CPLP em prol da retomada de cenários colaborativos nos campos científico, empresarial, social e artístico.
Os Duetos, projeto existente desde os primeiros passos da associação, combatem a cultura dos egoísmos por meio da reconstrução da cultura do diálogo. Em seus encontros, que apresentam sempre ideias opostas em palco e ambiente aberto à intervenção, o projeto propõe que seja a cultura, este instrumento inerente a qualquer nação, a chave para a integração. Afinal, se corremos o risco de esquecer como debater, é preciso que o diálogo horizontal e participativo volte a ser um traço cultural de todos os povos.
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Para os Duetos, já sabemos – contrariando Saramago – o nome daquilo que carregamos em nós: é identidade cultural, em seu mais amplo sentido. Cultura é o que somos e o que queremos ser; é o cerne da manutenção dos direitos humanos, do senso de humanidade e da vida em comunidade. É pela agregação do diálogo à nossa identidade que alcançaremos um consenso político sobre medidas de imigração e formaremos uma sociedade receptiva à implementação de políticas de integração entre povos, transformando a diversidade em trocas de tons – seja de discussão ou musicais – como a irmandade nascida no projeto entre os músicos António Zambujo e Yamandu Costa, que resultou no espetáculo “Duas Nações em Harmonia”.
É neste espírito que o Duetos provoca, neste 5 de novembro – dia em que o futuro de grande parte dos imigrantes do mundo será decidido nos Estados Unidos – uma conversa sobre como a literatura pode dar voz à migração. Com transmissão online, o projeto do FIBE reúne os escritores Álvaro Filho e Hugo Gonçalves em conversa que também será presencial, às 19h, na Livraria da Travessa.
Radicado em Lisboa há quase dez anos, o jornalista brasileiro Álvaro Filho é autor do novo O Mau Selvagem (Editora Uratau, 2024), que provoca reflexões importantes sobre a realidade portuguesa na visão de "autoexilado” do Brasil em Portugal. O também jornalista e escritor português Hugo Gonçalves já foi imigrante no Brasil, onde escreveu Enquanto Lisboa arde o Rio de Janeiro pega fogo (Casa das Letras, 2013), livro finalista do Prémio Leya, que mostra um Portugal em crise, que leva um assessor político com ambições literárias (e a cabeça a prémio) que foge para a “terrinha”.
Assim, o Duetos coloca lado a lado dois jornalistas, autores premiados e imigrantes (ou ex-migrante). No centro de tudo, a escrita transatlântica deles. A moderação será da jornalista Caroline Ribeiro, do DN Brasil.
*Luisa Cunha é advogada e imigrante brasileira radicada em Portugal há três anos. Coordenadora do Projeto "Duetos" e membro da equipa do FIBE, é pesquisadora nas áreas de direitos humanos, cooperação internacional e gestão de ONGs.