Opinião. 25 de abril ou de novembro? Qual memória Portugal vai escolher preservar?
"Em Portugal, o 25 de Abril não é apenas celebrado num desfile pela Avenida da Liberdade – é defendido, ensinado e transformado em símbolo da nação."
Texto: Diogo Batalha
Em Apocalipse 3:15-16, está escrito: “Eu conheço as tuas obras, que nem és frio nem quente; quem dera fosses frio ou quente! Assim, porque és morno, e nem és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca.” Talvez alguns políticos mais conservadores já tenham cruzado com este trecho. Então, se até a Bíblia diz que na vida é preciso tomar posição, vou deixar aqui a minha — ainda que a opinião de um imigrante possa valer pouco no debate sobre a celebração do 25 de Novembro na Assembleia da República Portuguesa.
Explico: em Portugal, o 25 de Abril é uma data sagrada. O dia da liberdade, da Revolução dos Cravos, que simboliza o fim da ditadura e o início de um caminho democrático.
Para mim, que sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo de Aracaju, sempre senti um quê de inveja deste momento da história portuguesa.
Que a ditadura brasileira começou em 1º de abril de 1964, todos sabemos. (Mas os militares juram de botinas juntas que foi em 31 de março de 1964, para não coincidir com o dia da mentira). Mas qual a data do fim? Bem… aí a escolha é à la carte: tem a Lei da Anistia, em 1979, a eleição indireta de Tancredo Neves, em 1985, ou até a Constituição de 1988.
Uma data que seja um marco unificador? Não temos. E talvez isso diga algo sobre a forma como cada país lida com o seu passado.
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No Brasil, parece que preferimos varrer os fantasmas para debaixo do tapete (que volta e meia aparecem para tentar matar presidentes, cof cof). Já em Portugal, o 25 de Abril não é apenas celebrado num desfile pela Avenida da Liberdade – é defendido, ensinado e transformado em símbolo da nação.
Ou, pelo menos, assim o era. Porque, no próximo 25 de Novembro, a Assembleia da República fará um ato oficial em celebração ao contragolpe que ocorreu no ano seguinte.
Para quem não está familiarizado, o 25 de Novembro de 1975 marcou o fim de um período de grande instabilidade política após a Revolução dos Cravos. Foi o momento em que as ditas forças moderadas prevaleceram sobre o socialismo revolucionário, encerrando o PREC (Processo Revolucionário em Curso).
Eu diria que “moderadas pero no mucho”, já que o 25 de Novembro foi, de fato, mais sangrento. Enquanto o 25 de Abril resultou em mortes causadas pela PIDE (a polícia da ditadura, apoiante do regime), os confrontos entre facções militares no 25 de Novembro deixaram mortos, evidenciando um nível de violência maior em seu objetivo final.
Para uns, isto consolidou a democracia; para outros, interrompeu os ideais mais transformadores de Abril. Isso está retratado por Chico Buarque na sua música "Tanto Mar".
Após abril de 1974, ele escreveu: “Sei que estás em festa, pá / Fico contente / E enquanto estou ausente / Guarda um cravo pra mim.”
Mas, com os desdobramentos políticos – e porque a ditadura brasileira só permitiu a gravação em 1978 –, ele acabou por adaptar a letra para: “Já murcharam tua festa, pá / Mas, certamente / Esqueceram uma semente / Nalgum canto de jardim.”
Eu, que vivo no país há apenas uma década, partilho deste sentimento do Chico Buarque. Como imigrante brasileiro em Portugal, é difícil não fazer um paralelo entre os dois países.
No Brasil, faz falta um 25 de Abril – uma celebração unânime do fim da repressão. Mas, e em Portugal? Não há o risco de diluir a memória do 25 de Abril ao dar tanta “atenção” ao 25 de Novembro?
Há algo profundamente simbólico em qual memória decidimos carregar. O Brasil optou pelo esquecimento. Portugal, pelo menos até agora, sempre escolheu lembrar e celebrar o “25 de Abril sempre e fascismo nunca mais”.
Hannah Arendt, em Origens do Totalitarismo, ao analisar como tratamos os regimes totalitários do passado, alertava para a tendência de encarar esses eventos como capítulos encerrados. Isso cria a falsa sensação de proteção contra as forças que os originaram. O sentimento de que “o pior já passou”, ignorando as raízes que podem persistir sob novas formas.
Em Portugal, o 25 de Abril – tratado como símbolo nacional – corre o risco de ir por esse caminho: transformar-se numa vitória isolada, sem questionar se os problemas estruturais da ditadura foram realmente superados. É como se a liberdade se tornasse um souvenir, mas sem a inquietação necessária para se perguntar: o que resta daquele espírito revolucionário em 2024?
Após a derrota da Alemanha Nazista, o Marechal Soviético Georgy Zhukov disse a famosa frase: “Nós libertamos a Europa do nazifascismo. E eles nunca nos perdoarão por isso.”
Já eu digo: o 25 de Abril libertou Portugal do salazarismo. E, ao que tudo indica, o pessoal do 25 de Novembro nunca os perdoará por esta libertação.
Cabe a Portugal decidir qual memória irá preservar: a dos cravos frescos de Abril ou a dos cravos já meio-murchos de Novembro. Porque, no fim, a escolha de uma memória coletiva é também a escolha do tipo de futuro que queremos construir para os nossos filhos.
Diogo Batalha é redator há quase duas décadas (e desde 2015 vive em Portugal). É aracajuano desde que nasceu e detesta que não saibam onde Aracaju fica no mapa. Pai de uma pequena portuguesa, tenta achar palavras para explicar até mesmo o que ainda não consegue compreender.