"Reflitam: a crítica ao país que se escolhe para viver é um sinal de pertencimento ou de rejeição?"
"Reflitam: a crítica ao país que se escolhe para viver é um sinal de pertencimento ou de rejeição?"Foto: Reinaldo Rodrigues

Opinião. Terapia de casal: Brasil e Portugal no divã

"Cabe a nós o equilíbrio e um relacionamento saudável e estável, criando espaço para a convivência sem assimilação forçada de um padrão “europeu” de cidadão com selo do governo e social".
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Texto: Luísa Cunha

Um amor que precisa ser comprovado está fadado ao fracasso. Foi o que me veio à mente ao ler a frase que indicava a necessidade de comprovante de “vínculo emocional”, durante o tratamento de uma das papeladas burocráticas de um dos serviços que venho buscando em Portugal. Adiciona-se ainda a adrenalina necessária para lidar com departamentos públicos no país, onde nunca sabemos se surgirá mais um documento que é indispensável, mais um formulário de preenchimento urgente com pagamento de uma taxa que chega em um boleto pelo correio no meu endereço de dois anos atrás. Adrenalina essa que, aliás, aprendi, não atinge só os imigrantes, mas, na nossa pele, todo aflito é ardente.

De qualquer maneira, essa dúvida prévia de um vínculo que tenho como tão sólido e estabelecido me pôs a pensar e, em larga escala, é uma audácia tremenda analisar um relacionamento do qual você tão pouco participa, pressupondo um questionamento tão grande como a própria possibilidade de ser um amor de fachada. Em termos práticos, sei que existem ainda os casos de compras desse tipo de vínculo, para trâmites ilegais de papeladas, se é que entendem. Mas não é uma prepotência? Abstraindo do meu caso específico que iniciou esta reflexão, que alguns portugueses exigem não só a nível social, mas que seja responsabilidade do Estado uma análise de vínculo entre imigrante e o país para comprovar sua capacidade de adaptação e possibilidade de permanência?

Que autoridade (ou audácia) tem qualquer um para dizer se eu estou ou não disposta a me encaixar na cultura local? Quem pode dizer, nativo de Portugal, com sinceridade, que conhece os dramas, desgostos e delícias de ser imigrante em seu próprio país? Estou ainda por conhecer um português que tenha, sinceramente, com toda sua autoridade de identidade nacional gigantesca, sentado em seu divã e refletido até que ponto essa personalidade nacional não tem colocado muita gente em uma mesma caixa pela arrogância contida na sua própria história de ilusão soberana.

Mais ainda é difícil trombar com um que ceda lugar nesse divã e esteja realmente disposto a ouvir — não escutar, ouvir, processar, sintetizar, refletir e diagnosticar criticamente aquilo que os milhões de imigrantes que o rodeiam gritam todos os dias: pelo amor de Deus, nos deixem entrar nesse círculo social. Me preocupa que, se este exercício não é feito na singularidade, que dogma é esse que permite que ele seja repassado às agências de imigração para dizer quem quer ou não, realmente, amar Portugal? Até que ponto a exigência de comprovação de vínculo é uma forma legítima de controlar abusos no sistema imigratório?  De forma parafraseada, até que ponto você ter acesso irrestrito à privacidade controversa de um companheiro (com todas as nuances de um ser humano em processo de adaptação) impede de que ocorra uma traição de valores e expectativas partilhados, garantindo uma relação harmoniosa e duradoura?

Porque, vejam a mim, por exemplo, criticando ferrenhamente o país e a grande maioria dos portugueses xenófobos constantemente nas plataformas que tenho. Isso é um papel de um “hater”, como dizem na internet, ou são traços de um relacionamento saudável de alguém que se importa suficientemente com o país para conseguir apontar as falhas no caráter nacional sem deixar de gostar da cultura e sotaque e de amar onde decidiu viver? E por que raios os portugueses não fazem o mesmo? Aquela máxima brasileira, um pouco hipócrita talvez, “ninguém fala mal do meu país, só eu”, fica um tanto quanto perdida quando as terras dessa parte da Península Ibérica eu também considero como minhas.

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E, pelo amor de Deus, não digo “minhas” para sintetizar o meme de colonização reversa, mas o “minhas” no sentido de pertencimento e de entender que faço aqui grande parte das minhas escolhas pessoais e profissionais, e contribuo no país com impostos, força de trabalho e pesquisa, e tenho como Portugal minha pátria também. É abismal a quem ama estar aqui ser pedido para que, não só nas frentes burocráticas, mas a cada passo que dá, tenha que comprovar o seu amor e devoção pelo país.

E digo mais: um relacionamento tóxico é aquele que demanda essa devoção cega. Ou seja, ainda que, como dizem, “me fodam os cornos” todo santo dia por falar “brasileiro”, eu devo esperar o português com a mesa posta, lhe entregando minha dignidade e partes da minha personalidade extrovertida — característica de uma cultura minha de origem — para quê? Integrar silenciosamente uma forma de escambo unilateral de vontades? É muito, realmente muito fácil ser tóxico quando se pensa ser o indivíduo superior da relação.

Surpresa: não existe essa escala entre nacionalidades. Principalmente não entre Brasil e Portugal, que têm um histórico tão complexo que são quase amantes. Cabe a nós o equilíbrio e um relacionamento saudável e estável, criando espaço para a convivência sem assimilação forçada de um padrão “europeu” de cidadão com selo do governo e social para habitarem Portugal. Apenas nós, que vivemos na pele o desequilíbrio do atual status, sentimos e identificamos as degradações sutis quase que condescendentes de como quem diz “te abraço e te acolho porque sou superior” e não porque somos iguais.

A xenofobia estrutural em Portugal não é um grito unilateral de uma generalização baseada em experiências isoladas. Ela está no “sinto muitíssimo” direcionado nas vozes de quem “acolhe” o imigrante e reforça quase em seguida a imitação de sotaque ou o estereótipo, afirmando “estava muito ruim por lá, não é?”. Como se por cá estivesse mil maravilhas. Está nos “olhares descendentes” de quem se coloca na tamanca de um padrão europeu de cultura e estilo de vida sem ser capaz de descer do próprio altar para criticar o país e reconhecer este próprio fatídico desvio de personalidade social português como um problema a ser levado a sério.

Não esperem devoção cega “à la anos 50” dos imigrantes que para cá vieram. Reflitam: a crítica ao país que se escolhe para viver é um sinal de pertencimento ou de rejeição? E nós, imigrantes, pensemos: onde está a linha entre crítica construtiva e ressentimento? Nenhum amor é preto no branco, e nenhuma história verdadeira, nenhuma intenção autêntica será apagada pelos pontos baixos dessa relação….mas vos juro, mais uma carta que nunca chega ou formulário que só se sabe depois da 4ª visita na repartição e terei realmente de sentar em um divã.

*Luisa Cunha é advogada e imigrante brasileira radicada em Portugal há três anos. Coordenadora do Projeto "Duetos" e membro da equipa do FIBE, é pesquisadora nas áreas de direitos humanos, cooperação internacional e gestão de ONGs.

O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil.
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