Desfile deste 25 de Abril em Lisboa.
Desfile deste 25 de Abril em Lisboa.Foto: Leonardo Negrão

Opinião. Para que serve o 25 de Abril?

"Nada adianta se não fizermos uso do 25 de abril não só para celebrar a liberdade e a democracia, mas para comemorar o fim da ditadura".
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Texto: Luísa Cunha*

Se a sua resposta automática foi: feriadão, pode ser que não esteja completamente enganado, dependendo do uso que faz do seu tempo livre para contribuir na sua formação crítica que, certamente, irás empenhar durante os scrolls das redes sociais. Penso que celebrar feriados assim, infelizmente, não vale muito a muita gente, não se conectam mais os pontos Liberdade-Democracia. Fico me questionando se aqueles que vão aos comentários gritar absurdos anti-libertários — sim, porque se ferem como tem ferido o próximo, seja ele quem for, são antidemocráticos e consequentemente assim classificados — entendem o real significado da palavra liberdade, ou ainda, se têm a noção de que o simples fato de estarem ali a digitar esses disparates lhes foi concedido por uma luta que tanto desprezam.

A sensação que tenho vivido desde 2018, com os desbarrancos políticos brasileiros, é que os avanços sociais que fizemos parecem um telefone sem fio. A mensagem era muito clara 40 anos atrás, quando o Brasil via a posse de Sarney, ou 51 anos atrás, quando Portugal viu canos de armas repletos de cravos, mas ao longo dos anos a mensagem foi distorcida a ponto de o vermelho dos cravos ser um símbolo não mais de luta e união popular, mas de ofensa. O telefone sem fio da vida em sociedade foi de tal forma que afetou todos os sentidos.

Começou pela audição, não se ouve mais o próximo. Passou à visão, não se suporta mais hoje ver e conviver com o diferente, com ideias opostas. Chegou ao paladar, deixando o amargo de associarmos uma posição política (seja ela de esquerda ou direita) a imagem de inimigo mortal ao nosso bem-estar. E deixou no ar um cheiro de pneu queimado, e orações feitas a extraterrestres pelo retorno de alguém nos salve do fascismo comunista que é querer abraçar pautas como igualdade e identidade de gênero e o fornecimento de serviços básicos como saúde e educação, ou no caso dos imigrantes, em poder se integrar a um novo país sem identificar-se como uma pária.

Lendo assim, parece conversa de doido. Pneus em círculos de oração, remigração como política de integração, “cidadão de bem” disseminando ódio pelas ventas. Não afetou em nada somente os sentidos, o telefone sem fio da vida em sociedade resultou em um bando de malucos, mexeu com a psique e nos levou ao que chamo de “ignorância espacial humana”. Perdemos ao longo dos anos a capacidade de nos importarmos para além dos nossos umbigos, queimamos o radar do bom senso de perceber que conviver em sociedade, ainda mais hoje em dia com um mundo globalizado em que se pode viver Portugal, Brasil e China na mesma tela ou na mesma mesa de bar, só é possível se eu souber brincar de quebra-cabeças.

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Sim, um jogo. Mas não há forma mais simples de se colocar. A liberdade é um quebra-cabeças, para a palavra fazer sentido preciso entender que o que eu penso, o que defendo, o que sinto e o que sou é uma peça e que o todo só fica completo, a imagem só se forma, o intrínseco da palavra só tem sentido, se reconheço meu limite e aprendo a terminar meu preenchimento e minhas crenças onde o outro começa. O mundo hoje é uma sobreposição desalinhada de vontades, valores e certezas, nem se reconhece mais o que haveria de enxergar nessa imagem que cada um tenta desesperadamente impor goela abaixo. Uma coisa, contudo, tenho certeza, não é liberdade nenhuma.

E sinceramente, acho lindo a representatividade. Toquemos alto as músicas de subversão das ditaduras, coloquemos em todas as nossas plataformas o lema de “ninguém solta a mão de ninguém”. Lutemos feito cães raivosos nos comentários. Mas nada disso adianta se não fizermos uso do 25 de abril não só para celebrar a liberdade e a democracia, mas para comemorar o fim da ditadura. Não há de se depositar tanta certeza que todos saibam, nos dias de hoje, que essas duas festas podem se encontrar, que dirá de que são a mesma coisa. 

Para os que ainda seguem firmes ao sol da primavera, que o 25 de Abril tenha lhe servido de descanso, uma brisa para encher os pulmões de ar e seguir cantando "Grândola, Vila Morena" por muitos meses mais, um fôlego necessário em meio ao mundo in(f)vernal que estamos vivendo.

*Luisa Cunha é advogada e imigrante brasileira radicada em Portugal há três anos. Coordenadora do Projeto "Duetos" e membro da equipa do FIBE, é pesquisadora nas áreas de direitos humanos, cooperação internacional e gestão de ONGs.

O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil.
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