Novas regras da AIMA entram em vigor no dia 28 de abril.
Novas regras da AIMA entram em vigor no dia 28 de abril.Foto: Reinaldo Rodrigues

Opinião. Não se pode engolir a estratégia de "porta na cara" da AIMA

"O inciso 3 mostra que a intenção do legislador é justamente no sentido de aproveitar o requerimento que contiver vícios sanáveis, portanto não cabe dizer que não vai receber se "faltar um papel".
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Texto: Priscila S. Nazareth Ferreira*

Uma das bases fortes do Estado Democrático de Direito, no qual Portugal está inserido como representante desse modelo de governação, é a possibilidade do particular, ou seja, o cidadão, requerer, invocar, solicitar, pedir, ou mesmo exigir, em determinados casos, o cumprimento de um dever por parte do agente público. E de que "dever" estamos falando? Do dever de prestar o serviço à mesma população que financia o próprio Estado com o pagamento dos impostos.

Numa análise simplista, o Estado é nosso empregado. E deve agir com base na lei, lei essa que outros empregados do povo editaram. Significa que o político, caro leitor, é seu empregado também. Você o contratou na intenção de que, quando eleito, criasse normas de acordo com o seu interesse. E nesse sentido falamos de interesses coletivos. Nesse contexto, pode o empregado dizer que não vai cumprir as ordens do patrão? Parece-me que não.

Mas a nova anedota da AIMA, de recusar atender cidadãos sem todos os documentos, faz parecer que sim. Por isso é preciso não se deixar levar. Vejamos o que diz a lei maior. A Constituição da República Portuguesa, no artigo 9, alínea b, diz que é tarefa fundamental do Estado "garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático".

O princípio do tratamento igualitário é um princípio fundamental. E nesse contexto dizer que imigrantes em igual situação, necessitados de autorização de residência, passam a ter obstáculos novos, que trazem consigo implicações que impeçam dar início a um procedimento administrativo é uma ofensa à isonomia. Isso é vedado na decisão consagra no acórdão 223/2003 do Tribunal Constitucional, ou seja, esse alarde da AIMA ofende a jurisprudência da corte do país, porque promove o "arbítrio" da Administração Pública ao invés da obediência à lei.

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Mas vamos avançar. Examinemos o art 18, quanto à força da lei. E como ela impõe limites à Administração Pública. "1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas". Se vinculam é dever direto da AIMA respeitar. E não excluir a seu gosto.

E por que? Ah, estamos muito atarefados...E continua… "2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos".

Qual justificativa relevante a AIMA pode apresentar para infringir o direito de petição do Código de Procedimento Administrativo? Temos muitas pilhas de processos a analisar, se faltar uma folha não vamos sequer receber!

Quando lemos o artigo 52 da Constituição da República Portuguesa fica muito claro que "TODOS os cidadãos têm o direito de apresentar, individual ou colectivamente, aos órgãos de soberania, aos órgãos de governo próprio das regiões autónomas ou a quaisquer autoridades petições, representações, reclamações ou queixas para defesa dos seus direitos".

Pedir a residência pela via administrativa é, em uma última análise, o cumprimento do Direito de Petição, da mesma forma que a Administração Pública tem o dever de decisão no prazo da lei, que para títulos de residência é de 90 dias. Nesse sentido, a própria lei define no Código de Procedimento Administrativo a medida a ser adotada no caso do pedido elaborado não estar corretamente instruído. E para tal se aplica o artigo 108, que prevê o preenchimento de eventual requisito ausente no pedido inicial. 

No próprio artigo 108 podemos ver as situações em que um pedido pode ser liminarmente recusado, sendo as dispostas no inciso 4. "São liminarmente rejeitados os requerimentos não identificados e aqueles cujo pedido seja ininteligível". Significa dizer que a recusa liminar somente se aplica nessas hipóteses, não cabendo à AIMA inovar. 

Além disso, a leitura do inciso 3 mostra que a intenção do legislador é justamente no sentido de aproveitar o requerimento que contiver vícios sanáveis, portanto não cabe dizer que não vai receber se "faltar um papel". E para não dizer que não falei de lei de imigração...

O Decreto-Reg 84/2007 define várias situações em que os documentos e certidões de consulta à situação do imigrante devem ser obtidas pela própria AIMA, em consulta aos sistemas integrados da Administração Pública, mas ainda assim o órgão exige do cidadão. Exemplo: extrato de contribuição da segurança social, certidão criminal de países cujo sistema é informatizado, certidão de não dívida das finanças, etc.

Já deu para notar que não se pode engolir essa estratégia de "porta na cara" para rejeitar requerimento de residência como foi noticiado, não é mesmo? Os argumentos jurídicos são muitos e o espaço do texto é curto. Mas espero que você tenha pescado a ideia. E se gosta de conhecer seus direitos leia com carinho este texto.

Eu reconheço que essas leis são uma sopa de letrinhas, mas vale o esforço para viver essa vida de imigrante e não ser vencido pela burocracia! E se precisar chame o homem da capa preta: o sr. juiz.

*Priscila S. Nazareth Ferreira é advogada especialista em Direito Internacional Privado

O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil.
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