Texto: Priscila S. Nazareth Ferreira*Hoje tenho duas histórias para contar das centenas que me caem nas mãos: uma do Kevin Alves e a outra da Júlia Cavalcante. Ambos são brasileiros, um do Rio de Janeiro e outro de São Paulo. Típicos imigrantes que vieram a Portugal na busca de uma nova vida. Esse sonho os une, mas o contexto da chegada no país é diferente. Júlia veio com visto de estudante, fez todo o processo desde o Brasil e conseguiu a residência sem atropelos. Era o ano de 2020. Acontece que a AR por estudo tem um tempo inicial de apenas um ano, e, tão logo, venceu seu título de residência, buscou a renovação como a lei obriga. Para a surpresa de Júlia, a autorização de residência não foi renovada, sob o argumento de que o curso profissionalizante que estava cursando não se encaixava na hipótese de estudo.Detalhe importante: Júlio veio com o visto de conseguiu a primeira autorização de residência pela mesma escola. Por duas vezes a análise do caso foi feita e aprovada. Desesperada com a negativa que levou meses e meses (outro descumprimento revoltante da lei, já que uma renovação de residência não decidido em 60 dias da data do pedido obriga à emissão tácita da autorização de residência) a brasileira seguiu a "orientação" do atendente da AIMA.O profissional lhe disse que somente caberia para seu caso fazer uma manifestação de interesse, e, para tal, Julia precisava largar os estudos, porque o trabalho necessitava de ser integral. O trabalho que encontrou era em outro distrito e um novo recomeço se deu. Depois de três anos à espera de ser chamada, ela então se dirige à estrutura de missão para a nova entrevista. Desta vez, apresenta os elementos do seu trabalho subordinado, o mesmo que atua por todo esse tempo, cujos descontos à Segurança Social foram feitos desde o primeiro salário.Clique aqui e siga o canal do DN Brasil no WhatsApp!Apesar de todos os documentos terem sido entregues em mais de uma oportunidade, por duas vezes seguidas ela recebeu projetos de indeferimento. E hoje se vê novamente desesperada com a ideia de ter de ir embora por falta de documentos.Agora falemos de Kevin, carioca da gema como eu, que sonhou viver na Europa e servir na legião estrangeira, já havia seguido carreira militar no Brasil, daí sua intenção. Fez todas as etapas do processo, mas acabou por não ser aprovado na última, porque em detrimento de homens solteiros, Kevin é casado e tem filho. Situação essa que fez com que fosse eliminado na etapa final, às vésperas de uma missão ação fora do país Sabedor de que Portugal permitia a concessão de residência com dispensa de visto, ele decidiu vir morar em terras lusitanas, e assim se manter na Europa com sua família. Fez tudo que era suposto e se mantém trabalhando e contribuindo para Segurança Social assim como sua esposa desde que chegaram em 2023. A esposa recebeu a residência e fez a entrevista na mesma época que o marido. De modo surpreendente, ao Kevin foi recusado o pedido, mesmo que, da mesma forma que Júlia, a brasileira que veio com visto, tenha apresentado todos os documentos necessários.No caso de Júlia Cavalcante, a AIMA alega que ela não possui contrato de arrendamento. E é verdade! Por que juntamente com Júlia, 67% da população em Portugal, que arrenda quartos ou imóveis, fica à mercê da ganância dos senhorios que não querem declarar impostos, facto esse indiscutivelmente conhecido de toda sociedade. Ao invés de negar o direito à vítima cabia à AIMA oficiar ao Ministério Público e às finanças sobre o crime de sonegação de impostos por parte do proprietário do imóvel e não trazer ainda mais prejuízo a quem já se encontra vulnerável no país e necessita de documentos.Não obstante, a brasileira mora na mesma casa desde 2022, apresenta o atestado de morada, contas de consumo em seu nome e ter o domicílio fiscal no mesmo endereço, por duas vezes a análise do seu pedido acabou por ser negativa. Significa que o Estado Português age numa sucessão de erros grotescos com essa cidadã, que num país sério seria indemnizada por todo o transtorno que tem vivenciado. Mas estamos falando de países sérios e não da vergonha que se tornou Portugal.Vale destacar que, na eventualidade de dúvida da documentação apresentada, cabia à AIMA converter a decisão em diligência, situação em que poderiam ir ao local e comprovar pela oitiva de testemunhas que a imigrante diz a verdade. Essa previsão está na Lei, no artigo 58 e no 116 e 121 do Código de Procedimento Administrativo (CPA), não cabendo simplesmente a negativa do pedido ignorando as provas apresentadas.A situação do Kevin não é melhor. Infelizmente, o incumprimento da lei pela AIMA é recorrente. E muitos dos projetos de indeferimento decorrem de análises estúpidas, que negam o óbvio. Do Kevin foi solicitado o número de identificação fiscal (o famoso NIF) e a abertura de atividade, quando desde que deu início à Manifestação de Interesse anexou tais documentos no portal SAPA. Voltou a anexá-los por ocasião do agendamento e levou os originais em papel na entrevista. Também os entregou em "cumprimento" ao projeto de indeferimento sem lhe ser dada qualquer prova de resposta à exigência, como é próprio da agência, que não assegura o comprovativo de entrega de documentos, descumprindo o disposto nos artigos 62, 2, 104,1,a e 106,1, ainda que a prova da entrega tenha sido exigida.O cidadão é trabalhador independente. Fez IRS, emite recibos verdes e há 33 meses e paga impostos. Como um analista lhe pede o NIF? É absurdo ou não é? Se eu não tivesse lido o projeto de indeferimento com meus próprios olhos diria que é mentira.Por mais inacreditável que pareça, esses erros são recorrentes, como já dito acima, e está na hora do Governo parar de fazer política com números para os jornais e a população e assumir que os tantos processos analisados são em sua maioria um acumular de erros que estão prejudicando os cidadãos imigrantes. Falamos de famílias, pessoas sérias, que pagam impostos, e muitos oriundos da CPLP, cujo acordo de mobilidade está vigente desde 2021. Também está na hora do Poder Judiciário se posicionar. Os processos estão chegando aos tribunais e as desculpas da AIMA são as mais estapafúrdias. E os juízes, ao invés de decidirem logo em favor do cidadão, pela obviedade do Direito com as provas que lhe são apresentadas, acabam por fazer o mesmo que a própria agência, ao não sentenciarem de pronto uma vez recebida "desculpa". Há vários processos maduros para julgamento. Mas parece que julgá-los traria uma pressão maior na agência e, portanto, a inércia opera. Quero lembrá-los que em Portugal ainda não se rasgou a Constituição da República no seu artigo 15, que trata do direito dos imigrantes, tampouco o Código de Procedimento Administrativo, assim como a "lei do atendente" não vale mais que a Lei de Imigração e as diretivas da União Europeia.A pergunta é: até quando os advogados, a Ordem dos Advogados e a Provedoria de Justiça vão ficar calados? OBS: você pode discordar de mim no @narealemportugal.*Priscila S. Nazareth Ferreira* é advogada de Direito Internacional Privado.O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil..50% dos imigrantes com manifestação de interesse não vão ter título de residência.Governo não disponibiliza meio de renovar título residência e brasileiros se desesperam