Assim como tantos brasileiros, Marcel Borges trocou o Brasil por Portugal em busca de uma vida melhor. Em agosto de 2018, ele concretizou esse sonho quando se mudou do Rio de Janeiro para Lisboa. Advogado no Brasil, ele viu no início de sua trajetória em Portugal uma grande barreira para se inserir no mercado de trabalho. A solução, então, foi trabalhar como “estafeta”, nome designado para os trabalhadores de plataformas de entrega e transporte em Portugal.“Quando cheguei aqui, me deparei com um mercado bom para se ganhar dinheiro, que era a parte da estafetagem. Ainda era o princípio das operações da Uber, da Bolt, dessas multinacionais. Haviam ainda poucos estafetas, mas com o passar do tempo começou a crescer bastante, com essa narrativa da liberdade do trabalho e que era relativamente fácil de entrar no meio. A coisa começou a mudar depois da pandemia, quando aconteceu o movimento contrário, que foi perder os rendimentos, por conta que não se precisava mais tanto dos estafetas. Nessa época o pessoal já tinha saído daquela parte de isolamento e nós passamos de herois para marginalizados, digamos assim”, relembra Marcel em entrevista ao DN Brasil.Ainda antes da pandemia, Marcel, já confrontado com a precariedade no setor, juntou-se a outros trabalhadores diante desse cenário e criou o Estafetas em Luta, um grupo de apoio e mobilização que já conta com cerca de 180 membros que trabalham no meio, a maioria brasileiros. Seu trabalho? Lutar por melhores condições para quem escolheu Portugal para morar e trabalhar como entregador de comida ou motorista de aplicativo, mercado que por muito tempo foi dominado justamente por quem veio do Brasil. “Nos últimos anos, a maioria dos estafetas eram brasileiros e agora, recentemente, virou um mercado mais explorado por imigrantes que vêm da Ásia. De todo jeito, é um meio que conta com muita gente da nossa comunidade, portanto quando migrei da estafetagem para a minha área, a advocacia, acabou que a maior parte dos meus clientes viraram estes trabalhadores brasileiros”, afirma Marcel.Desde então, o advogado é uma das principais vozes na linha de frente da classe que busca mais reconhecimento e direitos no mercado de trabalho. Segundo estimativas do grupo, já são mais de 70 mil os residentes em Portugal que trabalham na estafetagem. “A gente julga que seja na média de uns 20 mil estafetas e uns 40, 50 mil TVDS, mas são estimativas, não há nada registrado de maneira certa. Se por exemplo você abrir um café ali na esquina, a ASAE (Autoridade de Segurança Alimentar e Económica), a polícia ou quem quer que seja vai ter informação de quantos funcionários tem ali, quem é o dono, quem é o gerente. Já quem trabalha para essas plataformas, não. Trabalha para uma pessoa que nunca viu. Quando quer recorrer a alguma coisa, são sempre respostas automáticas, de inteligência artificial”, Ao longo dos últimos anos, Marcel Borges passou não só a defender judicialmente os trabalhadores contra a precarização da empresa, como também virou um porta-voz de ações organizadas do grupo, como greves e manifestações. Para ele, o meio é o principal exemplo da “uberização” do trabalho humano, algo que, acredita o advogado, está cada vez mais próximo de chegar a outras profissões. “Como costumam dizer, nós somos os bodes expiatórios da uberização. E isso está acontecendo em todas as profissões, não vai ficar só com os estafetas, amanhã vai ter isso com os jornalistas, com os advogados… toda profissão vai passar por essa uberização que é nada mais, nada menos que a prostituição dos preços. A pessoa vai buscar não a qualidade, mas a praticidade e por uma tarifa baixíssima. É aí que entra o problema da uberização”, pontua o advogado, antes de dar o exemplo das condições a que são submetidos tantos trabalhadores e motoristas de app:“Nós não somos negacionistas de pensar que a tecnologia veio para destruir tudo, isso é bobagem. Mas o que a gente precisa é de regulamentação das coisas. Qual é o limite da tarifa? A tarifa mínima é quanto? O que não dá é um estafeta trabalhar 10 a 12 horas por dia para ganhar 30 euros, que é a atual conjuntura do negócio Isso obriga o trabalhador a morar com 12 pessoas em um T1, principalmente os indianos, os nepaleses, os paquistaneses que vem para cá em busca de uma melhor qualidade de vida e se encontram em situações realmente de degradação total”, lamenta o advogado.O futuro do "Estafetas em Luta"Ao falar diretamente para o imigrante brasileiro que pensa em construir uma vida cá, Marcel, com a experiência acerca da vida dos estafetas tanto nas ruas, quanto nos tribunais dá a palavra: não recomenda trabalhar no meio. “Não posso dizer que não vale mais a pena, porque cada pessoa tem a sua necessidade. Eu mesmo, como advogado, nunca imaginava que ia entregar comida na Europa, mas foi o que me ajudou a chegar onde eu estou. Mas se fosse para dar uma dica, acho que vale muito mais a pena a pessoa pensar em vir para desenvolver um novo ofício, como no turismo, por exemplo. Mesmo com a restauração, está com muita esta também tenha muita precariedade também. Eu acho que existem muitas outras áreas ainda, especialmente no empreendedorismo, que o brasileiro, quando vem aqui, tem muitas chances de sucesso, muito pelo nosso perfil, nós somos mais ousados, parece que a gente tem menos medo. Acho que o português gosta desse jeito malemolente, dessa articulação que nós temos”, recomenda.Combativo e solidário, Marcel, embora admita ter sido alvo de alguma xenofobia por seu perfil reivindicativo em prol dos trabalhadores imigrantes, ainda entende que Portugal é uma boa escolha para os brasileiros. De acordo com o advogado, mudar para o país foi a melhor escolha da sua vida, onde viu nascer um espírito comunitário que cresce a cada dia e onde presenciou momentos fundamentais de seu percurso, como o nascimento de sua filha, a portuguesa Filipa, de cinco anos. Mesmo reconhecendo que as vitórias são cada vez mais difíceis em tempos nos quais a tal “uberização” vai dominando as diferentes áreas de trabalho, Marcel faz um apelo para o brasileiro que está em Portugal na luta diária dos trabalhadores de aplicativo fazer parte dos Estafetas em Luta. “Acho que a principal mensagem que eu deixo para as pessoas que vêm é que o nosso grupo está de braços abertos para que aconteça esse ingresso, essa adesão desse tipo de pessoas, pessoas de bem. A mensagem que eu deixo de futuro para o Estafetas em Luta é que ele, de fato, consiga representar as reais necessidades, realmente seja o porta-voz dessa comunidade que tanto agrega brasileiros e tanto contribui para o Estado português, tanto na segurança social quanto nas finanças. Então, nós temos uma leva de pessoas muito sérias e muito boas e queremos que essa família cresça cada vez mais”, finaliza. nuno.tibirica@dn.ptO DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil..Contrato de trabalho em Portugal: como é calculado o salário que vou receber?