Luca Argel: brasileiro concorre no Festival da Canção com música sobre imigração e xenofobia
Neste sábado (1º), o brasileiro Luca Argel sobe ao palco da semi-final do Festival da Canção, um dos mais importantes do país, com uma música inspirada em sua própria vivência e na de milhares de imigrantes que vivem em Portugal. Chamada Quem Foi, a canção de Luca trata da imigração com o olhar de quem é discriminado por essa condição.
O festival, que tem como base canções autorais inéditas, será apresentado na RTP, a partir das 19h na emissora. Na véspera desta apresentação, o artista conversa com o DN Brasil sobre a canção e sua participação ativa no combate à xenofobia.
Como surgiu esta participação no Festival da Canção e da música deste ano, Quem Foi?
No ano passado, o ano que o Leo participou, eu não estava concorrendo, mas eu participei também como um convidado de uma das músicas e entre atos, na final. Eles chamam alguns músicos convidados para se juntar e fazerem uma música especial. E a gente fez um potpourri de músicas relacionadas ao 25 de abril, porque era o ano dos 50 anos, do 25 de abril. Eu fui convidado para participar nesse número, então eu estava lá no festival também. E acompanhei essa história do Leo, estava torcendo muito por ele. E eu escrevi a minha música logo no dia seguinte de fazer a gravação para o festival.
Eu estava com tudo muito fresco na cabeça e essa história foi um pouco inspiração também, me ajudou a encontrar a ideia que eu queria para a música. Eu nem tinha sido convidado para participar do festival ainda, mas eu estava imaginando, tinha vontade de participar e estava imaginando que se me chamassem no próximo ano, essa história foi uma super inspiração para escrever a letra da música, para encontrar a forma de falar sobre esse tema, né? Porque a gente sabe que a xenofobia existe, sempre vai acontecer a reação. Mas como que a gente reage, como que a gente contra-ataca, que estratégias para lidar com isso em todos os níveis, tanto no nível mesmo pessoal, porque você precisa ter uma estrutura também. Uma estrutura e uma segurança, uma confiança para não entrar na onda, sabe? Não cair na onda do hate, não se deixar arrastar por isso. E ao mesmo tempo tentar levar uma mensagem legal para quem está assistindo, tanto para estrangeiros quanto para imigrantes. Eu recebi muita mensagem bonita de imigrantes que ouviram a música, se sentiram representados, sentiram que aquilo ali é um pouco da voz deles também.
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A sua participação nas redes sociais recentemente com esse tema também é uma forma de aproximar imigrantes do seu trabalho?
Sim, é uma forma também de dar contexto para o meu trabalho. Eu, de vez em quando, não faço com muita frequência, mas sei lá, uma vez por ano, eu faço um vídeo mais longo para redes sociais, falando sobre algum assunto, alguma coisa que acontece ou que eu vejo que me dá vontade de falar. Já falei, já fiz um vídeo há uns 3, 4 anos sobre uma situação dos Correios que vendiam uns manuais escolares da época do Estado Novo, completamente descontextualizado, com informações completamente desatualizadas, um discurso bem fascistão, assim, vendido do lado de livros escolares nos Correios aqui em Portugal. Achei aquilo bizarro e fiz um vídeo sobre isso. Teve outro ano que eu fiz um vídeo sobre o Museu do Tesouro Nacional, que estava exibindo, também sem contextualização adequada, um monte de peças de ouro e pedras preciosas que foram tiradas das colônias, assim, e estavam ali em exposição, meio que como um grande tesouro da coroa portuguesa, sem muita contextualização histórica de de onde veio aquilo, sabe? Quem foi que pagou por aquilo, no fundo, né? Então, de vez em quando, alguma coisa chama atenção e eu faço vídeos, assim, e essa música foi um dos... o assunto dela é uma das coisas que nos últimos tempos tem assaltado muito a gente, essa questão da imigração. Queria transformar isso numa mensagem, uma moldura, para a música, porque a música tem muitos recursos poéticos, ela não fala diretamente. É um outro tipo de discurso, né? E eu só tenho três minutinhos ali na música, num texto mais longo, que eu posso ler e filmar, eu consigo desenvolver, me aprofundar.
E eu já tinha aquele artigo da Amanda, quando eu li aquilo, eu li quando saiu, alguém me mandou, eu li e achei fantástico, eu achei uma ideia muito boa para mostrar, para fazer de uma forma muito imaginativa, muito literária e muito simples, muito acessível, né? Desenhar essa imagem de como o discurso xenófobo não para em pé. Não tem substância, não está baseado em realidade nenhuma, só em preconceito.
E eu guardei aquele texto, fiquei com ele assim, guardadinho. E agora, se aproximando do dia da apresentação da música, eu achei que era legal pegar aquilo como inspiração e desenvolver e fazer a ligação desse texto com a mensagem da música, para, sei lá, para as pessoas que vão assistir o festival, ou até as pessoas que nem estavam sabendo que ia ter o festival, que eu estava cantando no festival, para serem chamados, chamar a atenção dessas pessoas para o assunto, para a música e mobilizar. Agora o negócio viralizou, eu não esperava que fosse dar tanto assim. Eu tinha feito um vídeo na semana passada sobre os comentários, lendo comentários que apareceram no YouTube, e eu achava que esse vídeo dos comentários, como tem muito conteúdo mais explícito de hate, de discurso de ódio, e isso para as plataformas digitais elas adoram, o algoritmo adora essas coisas, e eu achava que aquele vídeo ia dar muito mais visualização do que esse que eu postei ontem, mas foi o contrário, foi completamente contrário do que eu imaginava. O que é bom, um vídeo com conteúdo mais propositivo, mais afirmativo, com recepção maior do que o do hate, isso é ótimo.
Como você analisa a integração de artistas brasileiros em Portugal?
Continua sendo difícil, mas já começa a existir um caldo de cultura que está cada vez mais natural, essa integração entre o artista brasileiro na cena cultural portuguesa. As dificuldades que um artista brasileiro, falando pela minha experiência, para desenvolver um trabalho artístico aqui não é tão diferente do ponto de vista estritamente profissional, artístico. Não é tão diferente das dificuldades que o próprio português tem, porque é um país que tem uma indústria pequena, relativamente pequena, em comparação com o Brasil, então nem se fala. E que tem um Estado que investe muito pouco em cultura, muito menos do que deveria.
Isso dificulta todo o ecossistema cultural, fica super dificultado a própria questão da gentrificação do preço dos imóveis nas cidades. Eu vi isso muito de perto no Porto, quando eu morei no Porto, que é uma cidade um pouco menor que Lisboa e que eu acho que foi uma presa mais fácil de abocanhar pela especulação imobiliária. Porque quando você começa a perder espaço nos centros da cidade, perder espaços imóveis mesmo, que eu digo, onde funcionavam associações, centros culturais, coletividades que promoviam atividades culturais ali, acessíveis para a comunidade, isso começa a destruir pela raiz todo o ecossistema de criação de cultura, de circulação de cultura no país.
Porque você perde os lugares de referência onde as pessoas se encontram, fazem parcerias, constroem seu público, começam a apresentar seus trabalhos. São vários fatores, alguns nem estão diretamente relacionados à cultura, mas esse contexto todo dificulta tanto para brasileiros quanto para portugueses. O que agrava a questão do brasileiro é que a gente chega aqui e muitas vezes ainda não conhece direito os espaços, as pessoas, não tem um círculo de amigos para dar aquele trampolim inicial no início da carreira
Quem vai aos shows são os amigos. Os amigos chamam os amigos e quando a gente chega ainda sem ter esse círculo, a dificuldade aumenta. Eu acho que são dificuldades que não estão relacionadas no meio artístico, pelo menos, não estão necessariamente relacionadas à xenofobia. O que pega no que diz respeito à xenofobia é a parte da vida mais normal, fora de palco, fora do ambiente artístico, quando a gente é cidadão como outra pessoa qualquer. E aí, nesse dia-a-dia, o bicho pega. Eu já testemunhei umas cenas bizarras, a pior de todas, aconteceu no Porto, com dois amigos músicos também, que são músicos de rua, que são músicos que estão numa posição especialmente vulnerável.
E eles estavam assim, tocando na rua, em plena luz do dia, na maior avenida do Porto, na Avenida dos Aliados. E estavam ali, como músicos estão ali todos os dias da semana, tocando na rua, sem amplificação nem nada, tocando percussão acústica. E chegou um grupo de três policiais apaisana, não estavam identificados, não se identificaram, abordaram eles, quando eles perceberam que os dois eram brasileiros, eles começaram a espancar os dois, assim, em plena luz do dia. Isso está filmado, é uma cena bizarra, aqueles insultos xenófobos todos que a gente já conhece, né? E sendo arrastados pelo chão, um deles quebrou uma costela. Enfim, esse tipo de violência, infelizmente, vai ficando cada vez mais comum e atinge toda pessoa imigrante, independente de ser artista ou não.
Ficha técnica de Quem Foi?
Música, letra e texto: Luca Argel
Piano e arranjo: Pri Azevedo
Video: Victor Neves Ferreira
Mix e Master: Hugo Valverde
nuno.tibirica@dn.pt