José Manuel Diogo: um português que escolheu a Paraíba para democratizar os festivais literários
Foto: Lu Schadek

José Manuel Diogo: um português que escolheu a Paraíba para democratizar os festivais literários

Enquanto muitos brasileiros procuram Portugal para trabalhar, o inverso também ocorre em várias áreas, como na cultura.
Publicado a

Como surgiu a ideia do Festival Literário na Paraíba?

Surge no ano passado, em abril, quando eu encontrei o governador da Paraíba, que me foi apresentado pela senadora Daniella Ribeiro, da Paraíba, que tinha estado na inauguração da Casa da Cidadania da Língua, em Coimbra. E ela gostou do projeto porque não tem nenhum festival literário na Paraíba, tem muitos eventos mas não tinha nenhum festival literário. Então, eu combinei um encontro e disse o que sempre insisto. Que vivo na Finisterra e você vive no Inícios Terra. A Ponta dos Seixas, na Paraíba, é o lugar mais oriental das Américas. E a gente pensou como celebrar isso e criamos o festival literário.

Você já conhecia a Paraíba?

Nunca tinha ido na Paraíba em toda a minha vida. Foi a primeira vez. Estive lá no Auditório Zé Lins do Rego, conheci um pouco daquele estado que é muito interessante. Até o nome das coisas, né? É um estado muito literário, a terra mudou de nome. A bandeira da própria Paraíba tem a palavra Nego escrito, porque eles se recusavam a participar da ideia de Brasil.

O festival vai para a segunda edição. O que marca esta feira?

Nosso propósito é ser um festival internacional com a ambição de juntar o maior número de falantes da língua. Já foi assim o ano passado,quando tivemos participações de Angola, Moçambique, Portugal e do Brasil, é claro. Este ano vamos ter de Guiné, Cabo Verde, Portugal e Brasil. É tudo muito burocrático, não conseguimos ainda esse ano colocar o festival nas leis de incentivo, mas para o ano que vem eu planejo apresentar pro Estado o festival, já com leis de incentivo. Nesta segunda edição vai ser um pouco diferente, a partir do que a gente aprendeu no ano passado.

O aprendizado faz parte.

Sim, o primeiro foi difícil, com dificuldades de entendimento, de timing, mas terminou bem, todo mundo ficou feliz. Então a gente começou esse ano um pouco mais cedo, porque o ano passado a gente montou o festival em dois meses e meio. Esse ano tivemos um pouco mais de tempo, até um pouco mais de tempo pra chamar as pessoas. Então está aí a segunda edição. A edição que encerra o ano dos festivais, que é outra coisa interessante. E eu pensei em fazer o Fliparaíba que fosse o festival mais próximo da Europa, da África, do lado do Atlântico, ao mesmo tempo que pudesse encerrar a época dos festivais literários, mas bom, agora eu não sei já como é que vai ser, porque isso virou um enxame de festivais literários de todo lado, descobriram que autores são mais baratos do que outros artistas. Mas ainda bem, porque os escritores são guardiães da democracia e do pensamento. Pode até ter músico de direita, mas a gente ainda não inventou o sertanejo da literatura, felizmente.

O que diferencia o Fliparaíba de outros festivais?

Tem logo essa proposta, que é um festival no início-terra e no fim-terra, um festival de contato com o oceano. Diferentemente de Paraty, que também é um festival ribeirinho, mas que é um festival da rota, um festival do antigo. O festival que eu quero é o do futuro. Hoje, as pautas da agenda Environmental Social Governance, têm origem no Sul Global, todas, dos problemas que vêm do Sul. Isso é uma coisa que o próprio Norte não assume, não enxerga. Então tem essa diferença. O festival, como eu dizia, que liga o velho conhecido, o velho conhecimento, a Europa a esse novo lugar, que é o novo mundo, que é o sul, que representa o novo conhecimento, uma nova forma de ver o mundo.

Pensa que esses festivais fazem com que o Norte global passe a ter estes outros olhares?

Acho que o norte já está enxergando diferente. Estive em Belém, na Amazônia recentemente, assisti a um concerto maravilhoso, com o Chris Martin do Coldplay, que decidiu ser percussionista do Seu Jorge e cantar junto com a Anitta, o Gilberto Gil, o Ed Sheeran. E todos eles defendendo pautas de lugares que não são deles. Hoje, o Norte enxerga o que fez no Sul. Há uma dívida gigante e no pagamento dessa dívida reside a salvação do planeta e da humanidade. O Elon Musk irá pra Marte sozinho, que ninguém vai querer ir com ele.

Como é que você sente nesse papel de um europeu fazendo essas provocações sobre a Europa?

Tem um poeta europeu, o Miguel Torga, que, aliás, a quem eu fiz a última entrevista da vida dele, ele fala que quem faz o que pode, faz o que deve. E essa descoberta que eu tenho feito pelo Brasil, pelo Sul Global, pelo mundo e pela minha carreira, que é no jornalismo, nos negócios, na câmara, no que seja, eu me sinto nesse lugar de poder ajudar infimamente, como todas as ajudas individuais de quem não é líder de um grande país. É eu poder ajudar a dar voz a essa necessidade que os cidadãos do Norte precisam ter de que é muito necessário colocar mais justiça no mundo e reparar o que foi cometido nos últimos 500 anos, que não é nem tudo mal, nem tudo horrível, mas, na verdade, existe uma dívida do Norte para com o Sul, existe uma dívida do mundo que se industrializou para com o mundo que veio depois. Quando você pergunta como eu, como europeu me enxergo, como o Miguel Torgas, fazendo o que eu acho que devo fazer, e eu acho que encontrei aqui, na cultura, na literatura, que sempre foram coisas da minha vida, junto ao modo de olhar a vida um pouco desapaixonado e menos artístico, tem que ver com os negócios, de encontrar, nisso que eu estou fazendo aqui, ajudando os brasileiros a entender o viés dos europeus. A coisa não pode se fazer em conflito, a mesma coisa que eu ajudo os portugueses e os europeus a olharem para um problema que eles muitas vezes não entendem que existe. Isso me deixa no lugar de tomar pedra dos europeus e de tomar pedra dos brasileiros [risos].

Você encontra resistência nessa posição?

Claro que sim, tem gente que me chama de europeu e que me manda para a Europa, e quando eu chego na Europa, eles me chamam de brasileiro e me mandam para o Brasil. O Albert Einstein dizia que se a relatividade, se a teoria de relatividade se provar certa, os suíços vão chamar-me suíço, os franceses vão chamar-me francês e os alemães vão me chamar alemão. Se se provar que ela está errada, os suíços vão me chamar francês, os franceses vão me chamar alemão e os alemães vão me chamar judeu. Então, isso ali entre guerras mundiais era um statement poderoso. Não tomando tanta importância para as coisas, tem gente que gosta de ficar num lugar de conforto. Eu não me sinto confortável num lugar de conforto. Portanto, eu faço isso que eu tenho que fazer. Às vezes bem, outras vezes mal, às vezes com mais sucesso, outras vezes com menos. Isso é normal. E acho que a literatura e o pensamento hoje é um lugar importante. Até por isso que a gente falava que está virando pop. É um lugar onde o facilitismo, as notícias falsas, o ódio tem mais dificuldade em entrar. Por isso que é um lugar mais denso, mais pensado. Então, isso ajuda a que se guarde a humanidade. Como aconteceu ao longo da história sempre, com menos visibilidade, porque a história era contada de forma mais lenta. Hoje é mais rápida. Hoje todo mundo tem acesso a mais informação.

Clique aqui e siga o canal do DN Brasil no WhatsApp!

Você vê os escritores e os festivais literários como esses guardiões do que ainda existe de bom no mundo?

Claro que sim. Hoje, um escritor é uma espécie de frasco da democracia. É um frasco onde se guarda a defesa da democracia, a defesa dos valores. Os escritores hoje são redutos civilizatórios, como se fala aqui no Brasil, redutos de civilização. A gente está guardando neles e eles representam o que a civilização tem de melhor e a gente vê o que ela está perdendo. Hoje o populismo está excedendo na esquerda. A gente não combateu a direita populista e a gente está combatendo ela com a esquerda populista. Isso não traz nada de novo, não traz nada de bom. Mas, agora, eu não sei se é outra solução melhor, acho que ninguém sabe. Acho que estamos todos testando qual é a solução. Às vezes eu fico pensando assim, que os chineses, que são um povo sábio e antigo, já tenham descoberto isso antes.

E qual o fio condutor na curadoria desta edição?

Temos três níveis de curadoria. Um é não esquecer onde o festival é, é na Paraíba, é em João Pessoa. E a Paraíba tem Campina Grande, que é outra grande cidade. Temos que fazer um festival onde o velho desconhecido encontre um novo conhecimento. Então metade dos escritores são paraibanos. O segundo eixo da curadoria é uma representatividade da língua portuguesa e saudar o investimento que a Paraíba, porque a Paraíba é longe. É longe de São Paulo, é longe de Lisboa, de Angola. E essa contradição, como eu falava há pouquinho de contradições daquela terra, essa é uma delas. É a terra mais próxima e é a mais longe, ao mesmo tempo. Então, tem isso, que é de um festival ter esse segundo nível da curadoria, de um festival ter uma representatividade da língua. O terceiro nível é o estar alinhado com as questões do futuro, estar alinhado com as discussões que o mundo precisa fazer. Escolhemos a temática das mesas, que era o percurso que essas dez mesas desenham em volta na Nossa terra, nossa gente, ancestralidade, identidade e o futuro da democracia. É isso, o nosso festival na Paraíba é terra, é gente, é o futuro da democracia.

Na edição passada foi criado um manifesto contra a colonização, terá algo semelhante nesta edição?

Justamente, é a partir desse manifesto que a gente começa para um futuro descolonizado, o segundo festival vai por aí. Nas três camadas do mapa narrativo, a linguagem como território simbólico, a linguagem como campo político e a linguagem como gesto poético. Depois é o percurso que a gente faz por cada uma das dez mesas. A primeira é conectada diretamente com o ano passado, a língua e com o que é sempre a língua como território de cidadania. Esse título existe praticamente em todos os festivais que eu faço. Nesta mesa teremos uma paraibana muito promissora, que é a Aline Cardoso, o Silviano Santiago inaugural, que ganhou o prêmio Camões, que tem 91 anos. Uma coisa interessante é que a gente tem dois prêmios Camões no festival. Isso é muito relevante.

E por que a escolha da ancestralidade como outro tema do festival?

Hoje que a gente discute o futuro da democracia, que não é uma coisa ancestral, a democracia não foi inventada pelos povos indígenas, nem pela população negra que depois foi escravizada, levada para o Brasil e depois foi jogada ao acaso. Essa democracia era uma construção do Norte, mas que hoje o mundo todo acha que é a melhor solução. Então, vamos ouvir o que a ancestralidade tem a dizer sobre isso e vamos pensar como é que esse conhecimento da ancestralidade. Esses conceitos diferentes que ele tem de prioridade no tempo, prioridade no espaço, de valor das vidas que nós não damos, da harmonia das vozes que não são só humanas, nem só animais, são vegetais, são até minerais. Tudo isso nos obriga a pensar de uma forma diferente. E hoje a humanidade precisa de pensar de uma forma diferente. E daí está esse desafio ou essa provocação de perguntar o que a ancestralidade tem a ver com a democracia? E é isso que ela tem a ver com a democracia. Esse é o link que eu faço e acho que é um desafio, mas é também talvez o festival da minha maturidade como curador também.

E enquanto escritor?

Eu acabei de lançar Uma Geografia Poética, que foi publicado primeiro no Brasil, depois em Portugal. O livro é uma curadoria inventada. Eu queria fazer uma mesa com o Fernando Pessoa e com o Camões. É só inventar, mas inventar conhecendo. É um livro de ficção em torno de curadoria. O próximo, se chama Festa da sede, é uma parábola do sertão que acontece na Paraíba. E, para maio do ano que vem, tem outro que nasce dos passeios que fiz com o Germano Almeida em Coimbra no ano passado.

amanda.lima@dn.pt

Este texto está publicado na edição impressa desta segunda-feira, 24 de novembro.
O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil.
José Manuel Diogo: um português que escolheu a Paraíba para democratizar os festivais literários
Jeferson Tenório. “O discurso da extrema-direita é muito sedutor para o jovem da periferia"
José Manuel Diogo: um português que escolheu a Paraíba para democratizar os festivais literários
Fliparaíba sintetiza o poder da literatura e a riqueza da língua portuguesa em grande encontro no Brasil
Diário de Notícias
www.dn.pt