Fonoaudiólogas: veja como autoridade de saúde que habilita terapeutas da fala responde brasileiras
Ao exigir prova de "domínio do português europeu", ACSS diz apenas que o exame é "de tema livre". Indeferimentos afirmam que brasileiras apresentam "lacunas" de conhecimento, mas provas são realizadas por terapeuta da fala portuguesa e não por um profissional da área linguística.
Texto: Caroline Ribeiro
Foram mais de 20 anos de atuação como fonoaudióloga no Brasil, com foco na área de disfagia, uma dificuldade no ato de engolir, atraso de linguagem e gagueira, mas a formação e experiência não foram suficientes para que a brasileira Patrícia Pinheiro conseguisse autorização para trabalhar como terapeuta da fala em Portugal. "Temos imensas oportunidades de trabalho na área, mas sem a validação fica impossível", conta ao DN Brasil.
Natural de Niterói, no Rio de Janeiro, Patrícia iniciou o processo da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) para obter a habilitação necessária. Em Portugal, as competências da fonoaudiologia, unificadas no Brasil, são divididas entre duas profissões: a de terapeuta da fala e a de audiologista, e é a ACSS quem confere autorização para o exercício profissional de ambas.
O processo envolve, entre outras etapas, análise de históricos de formação acadêmica, currículos profissionais, mas quando os candidatos fizeram graduação fora de Portugal, a ACSS exige uma prova de "domínio do português europeu". No mês de julho, quando o DN Brasil reportou a dificuldade que as fonoaudiólogas brasileiras têm enfrentado, a autoridade respondeu, por e-mail, que "solicita a todos os requerentes que obtiveram as suas qualificações fora de Portugal, a realização de uma prova de verificação do domínio do português europeu, falado e escrito, (independentemente da naturalidade ou nacionalidade) e de conhecimentos, competências e aptidões no contexto dos diferentes campos de atuação do Terapeuta da Fala (paradigmas e métodos diferentes de país para país)".
No entanto, as profissionais brasileiras denunciam que a prova exigida tem contornos discriminatórios e regras que parecem ser "arbitrárias". Patrícia relata ter feito o exame em outubro de 2023. Um mês antes, enviou um email à ACSS perguntando sobre o conteúdo a ser cobrado e referências bibliográficas para estudar, já que não há nenhum tipo de edital disponível para consulta dos candidatos. A resposta, em poucas linhas, informou que a prova seria "de tema livre" e apresentado apenas no momento pelos peritos, conforme mostra a imagem abaixo.
Patrícia se deslocou de Braga, onde mora, a Coimbra, para o local definido pela ACSS para a realização da prova. A avaliadora, uma terapeuta da fala portuguesa, já teria indicado ali que o processo de habilitação da brasileira não avançaria.
"De cara, ela já disse que provavelmente seria indeferido. Pediu que eu escrevesse um texto em português europeu e ficamos conversando informalmente, mas eu já sabia que estava sendo avaliada", conta Patrícia, que acrescenta que a profissional portuguesa não conferiu nenhuma documentação da candidata.
"Disse que nós, fonoaudiólogas brasileiras, não podemos trabalhar como terapeuta da fala aqui em Portugal. Ainda argumentei, dizendo que estou aqui há seis anos e trabalho com atendimento ao público, atendo, diariamente, principalmente portugueses. Ainda perguntei o que de fato ela orientava para que conseguíssemos a validação e ela disse: 'falar o português europeu'. Disse a ela que já uso expressões, mas que, com a minha idade, isso é impossível, e a parte linguística, que deveríamos sim realizar uma atualização, ela disse que não, para eu nem tentar entrar em nenhum curso de português", relata a brasileira.
Três meses depois, em janeiro deste ano, Patrícia recebeu em casa a carta da ACSS com o indeferimento do processo. A justificativa afirma que Patrícia "demonstrou não dominar o português europeu" e também "não ter conhecimento dos instrumentos de avaliação aferidos para a população portuguesa nos campos de atuação do Terapeuta da Fala", conforme mostra a imagem abaixo. No entanto, a brasileira diz que a avaliadora "não perguntou nada sobre os protocolos", em referência aos modos de trabalho dos profissionais em Portugal.
Patrícia assinou uma petição ao Parlamento português que cobra "intervenção legislativa e administrativa" para que o exercício profissional de fonoaudiólogos brasileiros em Portugal seja regularizado. O texto cobra "critérios claros, transparentes e previsíveis" quando for necessária alguma prova de português. "No entanto, até o momento, os fonoaudiólogos brasileiros têm sido submetidos a avaliações arbitrárias, sem a devida transparência nos procedimentos adotados e sem a divulgação de editais que orientem sobre a preparação necessária", denuncia.
O DN Brasil ouviu o autor da petição, o analista de sistemas Adriano Moraes, marido de uma fonoaudióloga que, com medo de represálias, prefere não se identificar. "O que é o português europeu? O termo não faz parte da legalidade do país, não está definido em lugar nenhum. E se for ser validado [pela ACSS], que seja validado por um linguista, um terapeuta da fala não avalia isso", explicou Adriano sobre o motivo de ter criado a petição.
"Assinei a petição por acreditar que é possível alguma instância de fato nos ajudar", diz Patrícia, esperançosa.
O DN Brasil enviou, novamente, perguntas sobre a situação à ACSS, que não respondeu até a publicação deste texto.
caroline.ribeiro@dn.pt