Fonoaudiólogas brasileiras lutam para exercer em Portugal
Grupo expõe em dossiê situações em o órgão responsável por credenciar profissionais como terapeutas da fala discrimina o português do Brasil e faz exigências ilegais para o processo.
Texto: Caroline Ribeiro
Em 2017, Raquel Oliveira se mudou do Rio de Janeiro para Portugal com a família. Buscava mais segurança e oportunidades para os filhos, que queriam estudar fora do Brasil. Com mais de 20 anos de experiência como fonoaudióloga, procurou informações para exercer a mesma profissão logo ao chegar. Não imaginava que levaria quatro anos para conseguir uma autorização.
“Em setembro de 2017, dei entrada na equivalência do diploma pelo Instituto Politécnico de Leiria. Ali, o processo ficou quase um ano, só foi deliberado em outubro de 2018”, conta Raquel ao DN Brasil.
Em Portugal, a profissão de fonoaudiólogo não existe. As competências, unificadas no Brasil, são divididas entre duas profissões: a de terapeuta da fala e a de audiologista. Quando recebeu a validação acadêmica, a carioca procurou a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), que é responsável por autorizar o exercício da profissão de terapeuta da fala, para solicitar a credencial. “Me exigiram fazer uma prova do português europeu e foi muito difícil conseguir, porque esse pedido é ilegal. As pessoas que têm como língua materna o português não podem fazer. Todas as universidades em que eu ia diziam que estava errado. Finalmente, o centro de línguas da Universidade do Minho, que é uma empresa terceirizada, aceitou”, relata.
“Risco ao utente”
A validação de um diploma estrangeiro em uma instituição portuguesa não é requisito obrigatório para o registro como terapeuta da fala. Em janeiro de 2020, uma outra fonoaudióloga brasileira, que prefere não ser identificada, deu entrada no processo diretamente na ACSS. Na época, a cobrança pela prova de português já foi diferente.
Ela conta ao DN Brasil que o órgão já não pedia mais um teste realizado por instituições de ensino justamente por ter sido alertado de que a exigência era incorreta, mas passou a designar uma terapeuta da fala portuguesa para realizar as verificações. “Perguntei o que ia ser cobrado nessa prova, porque não tem um edital, não tem nada. Só mandaram um e-mail dizendo que eu seria avaliada quanto ao português europeu falado e escrito, que teria que escrever uma redação e que precisaria saber os protocolos que são utilizados pelos terapeutas da fala em Portugal”, diz a profissional.
Com a pandemia, ela só foi chamada para fazer o exame em março de 2022, na sede de um órgão público em Coimbra. Conta ter sido questionada, “como se fosse uma entrevista de emprego”, sobre os motivos da mudança para Portugal. “Certa hora, ela falou: ‘você não vai ser aprovada porque não fala o português europeu’.”
A partir daí, afirma ter sido vítima de preconceito.
“Ela falou que brasileiros não sabem nem conjugar um verbo, como é que vão tratar uma pessoa com perturbação do desenvolvimento da linguagem. Senti que sofri xenofobia naquele momento”, relata. A profissional diz ter indagado a terapeuta sobre a avaliação dos protocolos portugueses. “Ela disse assim: ‘já entrevistei outras colegas tuas e elas sabiam todos os protocolos decorados, então tu deves saber também’. E me mandou embora”, recorda.
Em janeiro de 2023, a brasileira recebeu o indeferimento do processo, que cita risco à “segurança do utente” como um possível resultado das diferenças entre o português europeu e a variante brasileira nos tratamentos.
Já a carioca Raquel Oliveira, depois de apresentar à ACSS, em 2018, o resultado da prova de português, ainda precisou passar por uma “avaliação da fala e da linguagem” com uma terapeuta portuguesa, realizada apenas no ano seguinte. Para dar o atestado, a profissional “exigiu que eu escrevesse que não ia atender fala e linguagem, só voz, alterações de deglutição e audição. Eu me submeti, senão ela não ia assinar”, conta a brasileira. Em janeiro de 2021, recebeu da ACSS o registro. "Juntando os dois processos, 40 meses aoo todo", diz Raquel, que, hoje, atende em seu consultório particular em Leiria.
O DN Brasil pediu uma entrevista à ACSS. A entidade foi questionada a respeito da situação dos fonoaudiólogos brasileiros, sobre a exigência de “fluência” no português europeu, sobre as provas conduzidas por terapeutas da fala que demonstram preconceito contra o português brasileiro, como está a ser realizado atualmente o procedimento, quais são as exigências, quantos processos estão a ser realizados, quantos já foram validados e quantos indeferidos.
Em nota de resposta via e-mail, a autoridade apenas esclareceu que solicita “a todos os requerentes que obtiveram as suas qualificações fora de Portugal, a realização de uma prova de verificação do domínio do português europeu, falado e escrito, (independentemente da naturalidade ou nacionalidade) e de conhecimentos, competências e aptidões no contexto dos diferentes campos de atuação do Terapeuta da Fala (paradigmas e métodos diferentes de país para país)”. Reforçou ainda que “existem diferenças de linguagem nos distintos domínios semântico, morfossintático, fonético-fonológico, quer na vertente oral, quer na vertente escrita” do português europeu e da variante do Brasil, sem referências aos demais questionamentos.
O DN Brasil sabe que fonoaudiólogos em Portugal organizaram um dossiê com documentos e relatos de situações e encaminharam para autoridades como a ACSS e o Conselho Federal de Fonoaudiologia (CFFa). Em fevereiro do ano passado, o órgão brasileiro participou de uma reunião no Ministério das Relações Exteriores, em Brasília, com autoridades de Portugal, que tratou de reconhecimento de diplomas e exercício profissional para diversas atividades. Em um comunicado nas redes sociais na época, o CFFa informou que “ficou esclarecido no encontro que, para solicitar a convalidação do diploma e poder atuar em território português, o fonoaudiólogo deve estar regularmente registrado” na entidade brasileira, o que implica que os profissionais continuem pagando as taxas anuais mesmo fora do país.
O DN Brasil solicitou uma entrevista ao conselho para saber dos avanços após a reunião de 2023 e se acompanha a situação atualmente. Depois de informar que haveria uma resposta, a entidade não retornou mais até o fechamento deste texto.
caroline.ribeiro@dn.pt