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Exclusivo: leia o prefácio do livro "Para comer com o coração de Dom Pedro"
Foto: Reprodução Instagram.

Exclusivo: leia o prefácio do livro "Para comer com o coração de Dom Pedro"

"Para comer com o coração de Dom Pedro é a resposta poética que preserva o coração, mas desconstrói o fetiche, com os seus mitos lusotropicalistas sobre nações unidas por um só coração e uma sociedade integradora das vidas imigrantes".

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por DN Brasil

Texto: Amanda Lima

Prestes a ser lançado em Portugal, o livro Para comer com o coração de Dom Pedro é de autoria da brasileira Manuella Bezerra de Melo, radicada em Portugal desde 2017. O DN Brasil publica com exclusividade o prefácio da obra, editada na Europa com o selo da editora brasileira Urutau.

No Porto, o livro será lançado no dia 10 de agosto. às 18h, no centro cultural Casa Odara. A moderação será com a escritora e pesquisadora Hannah Bastos. A entrada é livre. Confira a seguir o prefácio de Para comer com o coração de Dom Pedro.

E a 11 de setembro de 2022, conforme amplamente noticiado pelos meios de comunicação social portugueses, o coração do rei português D. Pedro IV e imperador brasileiro D. Pedro I voltou ao lugar em que repousava desde 1834, preservado em formol num bocal de vidro, na Igreja de Nossa Senhora da Lapa, no Porto (Portugal), depois de completar uma viagem de dezanove dias ao Brasil para que a real e imperial relíquia estivesse presente nas celebrações do bicentenário da independência do Brasil. A exposição do coração ao público português, que fez fila para o contemplar, bem como a cerimónia do seu transporte transatlântico mereceram holofotes mediáticos, com o presidente da câmara portuense a defender que a relíquia não poderia faltar às celebrações do bicentenário; seria “uma desdita”, assim escreveu.1 Com o coração real e imperial permanentemente vigiado —não fosse o mesmo escapulir-se e assim desviar-se à vontade dos presentes —, organizaram-se cerimónias políticas alusivas ao tema genérico“dois povos unidos por um coração”, não sem as críticas contundentes dos dois lados do Atlântico que, naturalmente, chamavam àatenção sobre o facto de a autorização da Câmara do Porto para que o coração experimentasse a viagem aérea transatlântica coadjuvar a sua instrumentalização política pelo governo brasileiro, entretanto também já bem defunto.

Eça de Queiroz, cujos restos mortais também poderão conhecer brevemente uma viagem de trasladação de umas poucas centenas de quilómetros — embora não transatlânticos, mas igualmente contestados por vários dos seus descendentes — rumo ao Panteão Nacional, poderia ver nesta viagem e exposição mórbida a inspiração acertada para escrever a continuação atual deA relíquia(1887). Isto, naturalmente, se à vida tornasse: tendo Queiroz nascido onze anos depois da morte do rei e imperador e falecido na viragem para o século XX e não obstante a ciência ter avançado e a esperança de vida aumentado, despojos mortais apenas ganham a vida instrumentalizada politicamente por quem cá humanamente vive centenas de anos mais tarde e determina que continuem viagens póstumas. As vontades de defuntos finam-se com o passamento físico dos seus corpos, jásabíamos, mas as suas relíquias, aquilo que deles sobra, servem as manobras que as conformam às vontades políticas nos tempos presentes. São a fetichização da construção da memória,é o que continuamos a aprender com estes exemplos. Então, o que faremos nós com o coração-fetiche que nos coube em sorte?

Manuella Bezerra de Melo dá-nos pistas a este propósito, no seu Para comer com o coração de Dom Pedro. Co-organizadora dos dois volumes Volta para tua terra(2021, 2022), e autora de Um fado atlântico(2022) e Pés pequenos para tanto corpo(2023), todos publicados pela Urutau, Melo foi uma das 48 mulheres, entre escritoras, poetisas e cantautoras, convidadas a criar inscrições para adornar o chão dos passeios das ruas, avenidas e praças da cidade de Lisboa, homenageando a memória dos 48 anos de democracia portuguesa, no âmbito da iniciativa Abril em Lisboa, da Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural (EGEAC). O seu poema “Bilhete a Sophia”, o mesmo que serve de epígrafe Para comer com o coração de Dom Pedro, foi pintado no chão do passeio do Cais das Colunas, com vista para o Tejo. Inspiradora coincidência, aquela que faz da vista para o rio a metáfora certa para ligar a memória do regime, que colocou um ponto final àhistória colonial, aos rastos desta história na atualidade, mas renova a promessa de abril.

Para comer com o coração de Dom Pedro é a resposta poética que preserva o coração, mas desconstrói o fetiche, com os seus mitos lusotropicalistas sobre nações unidas por um só coração e uma sociedade integradora das vidas imigrantes, recorrentes nos discursos políticos, mas que demasiados não encontram o seu respaldo no dia a dia numa sociedade pós-colonial que, estruturalmente patriarcal, ainda não exorcizou os seus fantasmas coloniais e cuida dos seus fetiches. Por isso, e interseccionalmente considerando, a mulher imigrante é um duplo alvo da xenofobia, machismo e misoginia que grassam de forma cada vez menos velada; por isso também, a sua fala constitui o último reduto de resistência e é deste lugar que Melo escreve, como o bem identifica no fim: “escrito por uma mulher imigrante, latino-americana, brasileira, nordestina e comunista”, convocando vários lastros e camadas sobre histórias de alteridades. É deste lugar de fala que também convoca as esperanças de Sophia de Mello Breyner para as renovar como promessa de ação: “De onde submergimos ao ruir das trombetas/ e cavamos túneis rumo a aurora dos tempos/ converteremos a madrugada que esperamos/ em eternidade deste abril refeito no agora”. Não se constrói uma comunidade, saída de abril, sem que as promessas que construímos para nós sejam as mesmas que oferecemos a todos e todas que escolhem este país para viver a sua vida.Qualquer discussão comprometida sobre integração numa sociedade pluricultural, e diversa por natureza, só poderá ser bem-sucedida se estivermos dispostos a enfrentar a fantasmagoria colonial e a desfazer os estereótipos. Passar à frente do coração-fetiche, portanto.

O histórico de xenofobia e misoginia que marca a vulnerabilidade dos corpos imigrantes e os das mulheres, em particular, no sistema capitalista, é longo e encontra eco em vários destes poemas. Dele farei uma cronologia meramente exemplificativa: em 2003, o movimento de mulheres portuguesas, que se intitularamMães de Bragança, organizou-se para expulsar trabalhadoras do sexo brasileiras que se encontravam a residir em Bragança; em 2021, o líder do partido de extrema direita referiu-se ao batom vermelho de uma candidata de esquerda para a insultar durante a campanha para as eleições presidenciais; em 2023, Keyla Brasil, atriz trans, interrompeu uma peça no Teatro São Luiz para exigir direitos de representatividade aos atores e atrizes trans para interpretarem papéis que tratam das suas vidas trans; e, no mesmo ano, um incêndio deflagrou num apartamento no bairro da Mouraria, em Lisboa, onde viviam em condições indignas, duas pessoas imigrantes que perderam a vida e outras 14 que ficaram feridas. Todos estes casos de mámemória inspiraram vários poemas emPara comer com o coração de Dom Pedro. Não os irei identificar para que a leitura diligente os possa reconhecer por si na palavra poética de uma escritora comprometida, que não se resigna ao silêncio a que muitos prefeririam disciplinar a existência imigrante, restringindo-lhe o direito de falar por si mesma, exercício legítimo de cidadania.

Organizados em cinco partes, os poemas representam, por um lado, a confrontação com as persistentes manifestações de racismo, xenofobia, machismo e misoginia e, por outro, as dificuldades reais e sofridas que se enunciam na primeira pessoa: “o sal que corre/ dos olhos à boca/ gela o nariz/ lentamente” (“Ferrugem”) que se somam à confrontação com aquelas. Destaco a última parte, “Carne de pescoço”: uma longa e tocante carta-poema ao filho, em que se rememoram agruras e esforços para, como mãe, assegurar uma vida e futuro dignos: “e fui outra a vida inteira/ outra que fui me perdi delas todas/ mas todas elas te amaram/porque foste tu quem as pariste/ já eu, filho, espero mesmo morrer depois de meus pais”. Carne de pescoço, expressão portuguesa popular tanto no Brasil como em Portugal, é o alimento do dia a dia que parece sobrar especialmente a quem é visto como o Outro. Com o coração começámos e no estômago parecemos terminar — Camilo Castelo Branco também fez uma associação semelhante, poucas décadas depois do falecimento de Dom Pedro.2

A antropofagia a que parece apontar o título desta coletânea, ritual cultural tupinambá que absorvia o inimigo como garantia de honra e promessa de futuro, pode ser lida como potencialidade decolonial reparadora de afetos. Está menos alinhada ao pensamento modernista de Oswald de Andrade e mais próxima dopensamento decolonial de Aníbal Quijano, assente na coexistência harmoniosa de diferentes heranças culturais (e não assimilação!). Também Deus-dará (Editorial Caminho), romance decolonial de Alexandra Lucas Coelho, reeditado no mesmo ano emque o coração de Dom Pedro foi forçado à viagem transatlântica, explora a mesma potencialidade reparadora da simbólica antropofagia. Se não considerarmos a potencialidade dos afetos, nada nos sobra. É também uma reparação com vista a um futuro decolonial que encontramos emPara comer com o coração de Dom Pedro, um livro sobre como devemos atentar às dores, as nossas e as dos outros, representadas para que possam ser transformadas com vista a uma comunidade de afetos. Que não desespere, então, o leitor que inicia agora a leitura deste livro: comer o coração de Dom Pedro, mantido em formol, seria um risco certo de saúde pública e a sua autora sabe bem disso. Uma comunidade de futuro, inteira, inclusiva e plural, tem de se ancorar nos afetos que acompanham o cuidado do Outro como a nós mesmos. Saibamos, por isso, comer com o coração.

Margarida Rendeiro

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