Charles Ruas já construiu milhares de casas acessíveis no Brasil, Portugal e Angola.
Charles Ruas já construiu milhares de casas acessíveis no Brasil, Portugal e Angola.Paulo Spranger

Empresário brasileiro que constrói casas populares em Portugal avalia dificuldades enfrentadas no setor

" A união entre o poder público que entra com o estímulo, com a regulação, com o apoio ao sistema produtivo e a expertise para fazer é uma chave ideal", explica Charles Ruas ao DN Brasil.
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No evento empresarial da cimeira Brasil-Portugal, o primeiro-ministro português, Luís Montenegro, apelou aos empresários brasileiros que invistam no setor da habitação em Portugal. O país está com dificuldades em cumprir o compromisso de construir 59 mil casas do Programa de Recuperação e Resiliência (PRR). Na sequência do apelo, o DN Brasil entrevistou o empresário brasileiro Charles Ruas, que já atua em Portugal e possui anos de experiência no mercado, em especial na construção de casas populares. Confira a entrevista.

Como é que você viu esse apelo do primeiro-ministro português em ir lá em São Paulo e pedir que os brasileiros venham aqui construir?

Eu vi com ânimo. É importante a gente ter essa sinalização política que estimula que os empresários brasileiros possam vir investir em Portugal e contribuir não só para os portugueses como para os imigrantes brasileiros também. Tanto na geração de oportunidades de trabalho, mas especialmente o acesso à habitação que é uma grande dor da população portuguesa, uma grande dor em Portugal. Então essa sinalização é uma sinalização positiva, embora os empresários brasileiros já estejam cá a trabalhar e a contribuir para isso e o que a gente precisa agora é de um caminho de oportunidade que seja estável.

As mudanças de regra e as incertezas elas atrapalham bastante para que os investidores possam se sentir confiantes de que estão fazendo bons investimentos e que terão retorno do seu investimento. Acho que a questão da instabilidade política ela atrapalha bastante e quando há uma sinalização desse tipo, se ela se torna concreta, com legislação que regula e deixa as regras claras, fica muito mais fácil para que os empresários possam se estimular e vir de forma maciça investir em Portugal para ajudar a resolver essa dor da habitação. Qual é o maior problema que você vê? Qual é o maior entrave que um empresário tem para construir aqui em Portugal? Veja, falando especificamente enquanto empresário imigrante, nós também sofremos com as dificuldades que os imigrantes de maneira geral tem.

Então, as comprovações de documentação, de experiência, construir um relacionamento com o sistema bancário português é começar do zero. Então, assim, eu, por exemplo, tenho uma empresa e continuo atuando no Brasil, construindo habitação popular, que chamamos lá e aqui habitação social, e nós já temos um relacionamento bancário, volumes de investimento, casas entregues, mas quando nós chegamos aqui para fazer avaliação para o crédito bancário junto ao sistema financeiro em Portugal, isso não é referido, é sequer considerado. Então, olha, o histórico que você tem no Brasil aqui não vale, a gente precisa entender e conhecer qual é o seu histórico cá.

Sendo que você construiu milhares de casas no Brasil no programa Minha Casa Minha Vida.

Nós temos hoje um histórico de experiência de 14 mil casas entregues, permanecemos lá construindo e entregando casas, mas quando chega aqui nós somos uma empresa com dois anos, como é tradicional, no primeiro ano dificilmente a empresa tem lucro, porque o ciclo do imobiliário é um ciclo longo de três anos, ou seja, você só começa a apresentar lucros contábeis na empresa depois de três anos de operação e quando se apresenta isso junto ao sistema bancário, o sistema bancário recua e não entra com apoio financeiro. E o ciclo do imobiliário, como eu disse, é um ciclo longo, que demanda muito capital e para você fazer um investimento desse tipo você precisa ter o apoio do sistema bancário.

Então, acho que esse é um ponto central, que o sistema bancário português precisa entender que para atrair investidores internacionais ele precisa também reconhecer essa estabilidade econômica que o sistema produtivo tem em outros países, que não só aqui em Portugal. E os outros elementos todos, a gente falou, a Cimeira trouxe um fato importante, que é o reconhecimento da senioridade para os engenheiros na inscrição da ordem e esse é um passo importante porque, é como eu trouxe, as empresas podem ter todo o histórico produtivo fora do país, mas quando chega cá não há um registro. Então, no Brasil nós temos lá as ARTs, as anotações de responsabilidade técnica, as CATs, que comprovam que a empresa produziu aquele volume de unidades e a gente não tem como comprovar isso cá em Portugal.

São elementos que os governos brasileiros e portugueses precisam construir um caminho de reciprocidade para que esses reconhecimentos sejam válidos em ambos os países, porque tanto nós temos empresas brasileiras atuando cá, como também empresas portuguesas atuando lá no Brasil. É um caminho de oportunidade para ambos os países.

Em relação à mão de obra, Charles, você tem dificuldade em contratar aqui em Portugal?

Sempre. Na realidade, aqui o gargalo da mão de obra qualificada é mais grave, mas é um movimento que no mundo tem se acentuado. No Brasil a gente também sente dificuldade de contratar a mão de obra, porque o serviço de construção civil, apesar de ter o nome de indústria, é uma manufatura. Ele depende da mão de obra, do trabalho que é pesado e que, por exemplo, a nova geração, os mais jovens, já não se interessam por esse tipo de trabalho, porque tem acessível outras oportunidades de trabalho que geram desgaste físico menor e isso é um fato, a gente precisa reconhecer isso.

A mão de obra é um problema no mundo e aqui em Portugal ainda mais, porque a gente já sabe da dificuldade que há de mão de obra, especialmente mão de obra que demanda força física. Então, há um trabalho importante feito pelas empresas no sentido de automatizar processos, de otimizar processos para que demandem menos desse esforço da mão de obra e, consequentemente, demandem menos de mão de obra. Mas ainda há situações em que a gente se envolve com projetos maiores, que têm durações maiores e que justificam trazer mão de obra do Brasil direcionado para determinados projetos.

Trabalho temporário?

Exato, que, na realidade, via de regra, a maior parte ou permanece cá em Portugal após a conclusão do projeto ou daqui segue para outros países da Europa que também demandam. Eu tenho um caso concreto, um projeto que a gente fez na Lagoa de Óbidos para um grupo francês, um parque de campismo. Nós trouxemos dez colaboradores e, ao término do projeto, sete foram para a França, porque o grupo já levou para desenvolver um outro projeto, e três permaneceram cá em Portugal. A gente também faz um trabalho de intercâmbio, que é importante destacar, porque sempre que eu falo sobre isso, muitas pessoas do Brasil ou que estão cá procuram saber para oportunidades de trabalho, mas que precisa estar regular, precisa estar com a documentação em dia para poder plantear postos de trabalho. Aí é um problema também do governo português, que demora na regularização dos imigrantes.

E aí a gente volta para essa dificuldade dos imigrantes, porque boa parte das pessoas querem vir ou até vêm, mas não conseguem se regularizar e terminam voltando, porque não têm acesso ao sistema bancário, não conseguem abrir uma conta em banco, não conseguem arrendar um imóvel. Então, uma série de complexidades que terminam travando e atrapalhando esse apoio e esse desenvolvimento da habitação em Portugal.

Quando você fala de mão de obra qualificada nessa área, você está falando de que? De encanadores, eletricistas, que tipo de profissional falta?

Serventes, que seria a mão de obra da base da formação profissional, nós temos bastante mão de obra disponível. Mas quando você precisa de um profissional qualificado, que saiba executar um pladu, que saiba fazer bem uma alvenaria, uma canalização, uma instalação elétrica, a parte de eletricista é um grande gargalo, então você não tem profissionais qualificados para poder executar a atividade. Isso faz com que o tempo de execução de obra seja maior, o retrabalho, o custo com o material. Você chega na obra, um serviço está mal feito, tem que ser refeito, então quebra-se, desperdiça material, tempo, então é um desgaste muito grande.

E que há também um caminho de oportunidade que é estimular a qualificação dos profissionais, porque tem muita mão de obra sem qualificação, que gostaria de entrar nesse segmento e que não entra porque não tem acesso à formação, porque não tem documentação. São normalmente cursos que o IEFP tem algumas formações, nesse sentido, mas o que acontece é que o IEFP pede que você tenha a documentação regularizada para fazer a formação. Então, por exemplo, você chega com uma pessoa que vem com visto de procura de trabalho e aí ele pode não ter a qualificação adequada e quer fazer a qualificação, então ele não pode fazer e aí você entra numa roda viva em que os processos não andam como poderiam andar.

Eu gosto sempre de dizer, não significa que é de todo mal, eu acho que tem grandes iniciativas, inclusive escolas privadas, escolas privadas conduzidas por brasileiros que têm feito esse trabalho, mas que têm uma oportunidade de acelerar muito mais esse processo.

Você também estava me dizendo que só construir não basta. O que mais o governo tem que fazer para resolver esse problema, além da construção?

Eu percebo, e olhando especialmente para o público português, que hoje a principal dificuldade que eles têm é a taxa de esforço. A maior parte das pessoas comprometem, eu vi uma estatística recente, cerca de 60% do seu rendimento é destinado a custear a sua renda da moradia. Então quando você chega no banco para fazer a aprovação do crédito bancário, o banco não aprova ou pede que você dê um valor de entrada muito alto e que o português tradicional que recebe um ordenado mínimo não tem condições de dar.

Esse elemento central que é o sistema financeiro, do financiamento bancário de acesso à habitação, eu acredito que é um ponto central para a gente mudar a realidade da habitação em Portugal. No Brasil a gente teve um exemplo que a partir de 2009, com a entrada do Minha Casa Minha Vida, os principais bancos públicos, a Caixa Econômica e o Banco do Brasil, criaram taxas de juros subsidiadas pelo programa público para que as pessoas tivessem acesso à sua habitação pagando metade da taxa de juros de mercado. Então fazendo um paralelo rápido, se a taxa de juros aqui em Portugal de mercado anda a volta de 5%, o governo entra com o subsídio para que essa taxa de juros caia a metade, a 2,5%.

Isso gera um impacto gigante na prestação mensal de quem vai adquirir o seu imóvel. Esse é um ponto central. Mas isso não é suficiente porque, via de regra, os bancos hoje pedem ao cidadão português 10% de entrada para você adquirir o seu imóvel e a um cidadão estrangeiro 30%. Isso é tão mais caro para nós. O que acontece é que no Brasil o Minha Casa Minha Vida subsidia esse valor de entrada. Então hoje você consegue comprar um imóvel dando zero de entrada. Isso faz toda a diferença. E agora recente o governo instituiu aqui o programa de habitação para jovens de 18 a 35 anos que permite o financiamento até 100%. Mas ele paga pelos 10% de entrada. No caso do Brasil não.

O governo subsidia e isso é a fundo perdido. Muitas pessoas podem pensar assim, poxa, mas isso não cabe na conta do Estado. Mas a realidade que a gente experimentou no Brasil é que ao fazer isso movimentou a economia, gerou emprego, renda, recolhimento de impostos e para cada R$ 1 investido pelo governo com subsídio isso retornou ao Estado em R$ 1,5.

Ou seja, pagou a conta e ainda teve um pouquinho de lucro.

É uma operação que é benéfica para todo o sistema. Porque você dá acesso à habitação às pessoas, você movimenta a economia, compra de insumos, materiais, gera emprego e renda e retorna ao Estado através de impostos. O ciclo econômico faz muito sentido para todo mundo e eu acredito que este sim é o elemento central para a gente mudar o cenário da habitação em Portugal. Parece um pouco simples, só pensar logicamente.

Já vimos, Charles, que sem investimento público não acontece. Mas também precisa estar em sintonia com as empresas privadas?

Perfeito. A gente viu essa experiência, o Minha Casa Minha Vida, eu considero que é um programa que apesar de muitas mazelas e oportunidades de melhoria, mas mudou o cenário da habitação no Brasil. Nós temos lá já entregues 7 milhões de moradias para pessoas que ou vivem em condição sub-humana. Imagina que é quase mais da metade da população portuguesa. E a gente pensa assim que para a realidade de Portugal, nós conhecemos muitos portugueses e imigrantes que vivem em condições, com a variação térmica que tem, condições climáticas terríveis. Muitas pessoas falam assim, poxa, eu vou na Holanda, eu vou na Inglaterra e não passo o frio que passa aqui em Portugal. E nem calor no verão.

Existem elementos importantes e no caso dos imigrantes a gente vê as questões de coabitação, pessoas dividindo o quarto, em condições sub-humanas de habitação. Eu acredito que essa união entre o poder público que entra com o estímulo, com a regulação, com o apoio ao sistema produtivo e a expertise para fazer é uma chave ideal para que a gente possa unir isso.

Eu fico assustado quando eu ando nas cidades e vejo a quantidade de imóveis devolutos, que são bens privados e muitos deles públicos e que estão lá subutilizados com toda uma infraestrutura pronta à volta, não precisa fazer infraestrutura de esgoto, de água, transporte público, energia, está lá pronto. É só recuperar o edifício e dar uso a ele. Então precisa da regulação do Estado para fazer com que aquele imóvel não permaneça devoluto e tenha instrumentos legais, por exemplo, no Brasil existe o IPTU progressivo, o imóvel que não tem uso passa a pagar mais caro a cada ano para poder forçar com que o proprietário dê uso àquele imóvel e uma série de outros instrumentos de regulação urbana, mas há também o incentivo à iniciativa privada, como por exemplo, nós temos aqui um IVA na construção civil de 23%, em áreas de reabilitação urbana isso cai para 6%. Por que não fazer esse IVA de 23% para 6% para produção de habitação no país todo? Então é um instrumento relativamente simples de ser feito e que gera um impacto gigante, porque basicamente hoje, por exemplo, os empresários brasileiros que produzem em Portugal produzem para alta renda, porque tem margens de lucro maior.

Se você reduz a carga tributária e faz uma equivalência na margem de lucro, faz com que essas pessoas passem a produzir habitação para quem mais precisa. Então é uma questão de prioridade, precisa de regulação, mas tem que ter, antes de tudo, decisão política para fazer. 

amanda.lima@dn.pt

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