Doutores da bola: brasileiros treinam clubes em Portugal
Brasileiros começam a carreira treinando times pequenos, em especial no futebol feminino.
Texto: Nuno Tibiriçá
Varlei Silveira tinha quase 10 anos de profissão como designer quando decidiu trocar o escritório por campos, quadras e piscinas. A relação com o esporte vinha de longa data: anos antes, Varlei insistiu até onde pôde no sonho em busca da carreira de jogador de futebol. Nascido em Porto Alegre, figurou no sub-20 do Grêmio ao lado de jogadores como Anderson e Lucas Leiva, que posteriormente fariam carreira em grandes centros da Europa. Uma grave lesão no joelho e o nascimento da filha fizeram com que Varlei tivesse uma mudança de rota. O jovem trocou os campos pelos estudos.
Após construir uma carreira sólida na área de design, onde chegou a trabalhar para a Google, o sonho de criança e a saudade do esporte fizeram Varlei trocar radicalmente de área. Contra a vontade da família e amigos, resolveu se mudar para o Rio de Janeiro e voltar para faculdade. Foi estudar Educação Física e passou a dar aulas de futebol e natação em ginásios da Cidade Maravilhosa. A busca pelo novo o levou ainda mais longe, e ele cruzou o Atlântico à procura de novas experiências.
“Sempre tive vontade de morar na Europa. Antes de chegar em Portugal, ainda morei na Espanha e na Suíça, aprendi novas línguas, conheci culturas. Nesses países eu trabalhei com tudo na área dos serviços, cozinha, hotelaria… mas foi em Portugal que vi a oportunidade de fazer o que gosto. Quando mudei para cá, rapidamente consegui começar a dar aulas de educação física em escolas e fui validar minhas cadeiras na Universidade Europeia para dar continuidade aos estudos daqui”, conta ao DN Brasil.
O crescimento do futebol feminino em Portugal abriu ainda mais portas para Varlei. Segundo relatório do Portugal Football Observatory, da Federação Portuguesa de Futebol, de 2013 a 2023 o número de atletas federadas aumentou em 132%. O crescimento no número de clubes impressiona ainda mais: 10 anos atrás, 294 equipas de 188 clubes diferentes estavam registradas na FPF. Em 2020-2023, esse número passou a 1.222 equipes de futebol feminino, encaixadas em 374 clubes diferentes ao redor do país.
Os dois Benficas
É justamente num dos clubes precursores da modalidade que Varlei dá seus primeiros passos na nova carreira em Portugal. O Clube de Futebol Benfica, conhecido como o Fofó, é, ao lado do Boavista, o mais antigo do país a ter o futebol feminino em seus quadros - desde 1994.
Fundado em 1895, nove anos antes do vizinho que virou gigante, o Sport Lisboa e Benfica, o Fofó tem como força maior o futebol feminino, tendo já atingido o topo na categoria principal: foi campeão nacional em 2015/2016 e conseguiu chegar a Liga dos Campeões da modalidade.
Em 2022, Varlei soube através de um amigo que o CF Benfica estava à procura de treinador para a equipe feminina sub-15 de futebol. Desde então, divide seu tempo enquanto presidente da Associação Criativar - que presta serviços de atividades extracurriculares ligadas ao esporte em escolas como a Gil Vicente, na Graça - e os treinos no CF Benfica.
“O Fofó forma atletas para a equipa sênior, que é das principais do país. Fico impressionado com a qualidade das meninas aqui. Tenho 27 atletas na minha equipe e digo sem demagogia que pelo menos metade tem qualidade para virar atleta profissional. Algumas até podem chegar na Seleção”, destaca.
Nos últimos anos, um dos nomes que passou pelo Benfica foi o de Kika Nazareth, principal estrela de Portugal no futebol feminino. Após o Fofó, Kika ainda jogou no Casa Pia antes de chegar ao SL Benfica e consolidar a carreira. Ano passado, marcou presença com a camisa portuguesa no Mundial.
Segundo Varlei, a boa atuação da seleção naquele mundial é resultado de muito trabalho nos bastidores para a modalidade ter o reconhecimento que merece. “No Brasil, tivemos a Marta como melhor do mundo por 10, 15 anos e só agora, três anos atrás, que começou a crescer. E isso porque passou a ser obrigatório que todos os clubes da primeira divisão tivessem um time feminino. Acho que a abertura e o investimento no futebol feminino no Brasil demorou muito para acontecer. Em Portugal, vejo diferente: a partir do momento que começou a aparecer mais, o crescimento foi muito rápido. Na distrital que jogamos o número de clubes dobrou de um ano para outro”, relata.
Com a licença de grau um em mãos, Varlei diz que não tem pretensões de se tornar treinador de equipes seniores: o que gosta mesmo é do futebol de formação e quer atingir o grau cinco da categoria. “Honestamente, não me imagino treinador de um grande clube profissional, ficando milionário. O que eu gosto mesmo é de treinar as crianças, ver atletas se desenvolvendo”, destaca.
Lisboa e futebol
Pedro Nasser estava inquieto no curso de Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Natural de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, Pedro, ao contrário de Varlei, viu cedo que uma possível carreira de jogador de futebol não era possível. Foi estudar Direito “porquê sim”, mas viu logo que a ideia de trabalhar no futebol era o que o cativava. “No meu primeiro estágio na PUC tentei ir para esse lado do direito no esporte. Mas vi que não dava, eu precisava estar mais perto, dentro de campo”. lembra. O estudante mudou de área e de país.
O brasileiro escolheu Lisboa como destino para iniciar os estudos enquanto treinador de futebol. A língua portuguesa foi fator importante na decisão, mas não o único. “Minha mãe estava morando em Portugal, e mãe também é sinônimo de casa. Foi o principal motivo por eu ter escolhido, mas a questão da formação de treinadores portugueses também foi importante”, diz Pedro. “A escola é conhecida há anos, desde Mourinho, Villas-Boas. Mas foi quando eu vi o Flamengo do Jorge Jesus jogar que eu pensei: “nunca vi nenhum time jogar assim no Brasil. Eu preciso entender o que é isso”, recorda.
Estudar para ser um treinador no Brasil não foi uma possibilidade. Segundo Pedro, a formação no país ainda é pequena, com muita abrangência na Educação Física, enquanto Portugal oferece cursos focados inteiramente no futebol. O curso de Pedro, Mestrado em Futebol na Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, é um deles. “É algo inimaginável no Brasil ter um curso universitário focado apenas em futebol. No Brasil virar treinador ainda é muito algo ligado a ser ex-jogador, não dão muita prioridade ao estudo como aqui”, explica.
Ao mesmo tempo que conclui o mestrado, Pedro Nasser tenta dar continuidade nas tais licenças mencionadas por Varlei. Desde 2023 está no seu primeiro trabalho na área, treinando a equipe sub-13 do Estoril Atlético Clube, clube satélite do Estoril Praia, onde já conseguiu as licenças de grau um e dois para treinador.
Brasileiros que fizeram história
Desde que o histórico treinador húngaro Béla Guttmann lançou o brasileiro Lúcio ao gramado pela seleção portuguesa em 1960, foram incontáveis brasileiros que vieram fazer história no futebol português. À época zagueiro do Sporting, Lúcio, nascido em Belo Horizonte, foi o primeiro a abrir caminho para chegada de futebolistas brasileiros a Portugal: Deco, Liedson e, mais recentemente, Pepe e Otávio são alguns dos quais, assim como Lúcio, tiveram tanto sucesso que se naturalizaram portugueses e vestiram a camisa lusa em campeonatos europeus e mundiais. Outros tantos brasileiros fizeram história com o uniforme dos principais clubes do país e tiveram aqui a porta de entrada para brilharem em outros cantos da Europa. Nos últimos anos, a tendência manteve-se. Em 2023/2024, a Primeira Liga de futebol masculino, por exemplo, se iniciou com 121 atletas profissionais nascidos no Brasil divididos entre os 18 clubes.
Treinadores como Abel Braga, Luiz Felipe Scolari e Paulo Autuori tiveram sucesso em Portugal nos anos 1990 e 2000, mas a presença de brasileiros à beira do campo em clubes portugueses nunca foi tão comum quanto dentro das quatro linhas. Agora, casos como os de Varlei e Pedro mostram que o fenômeno pode começar a ser cada vez mais frequente. Não só pelo recente sucesso de treinadores portugueses mundo afora - especialmente os casos de Jorge Jesus e Abel Ferreira no Brasil - mas também pelo constante crescimento do futebol feminino em Portugal. A ideia de Varlei e Pedro é levar o conhecimento adquirido em Portugal para outros cantos do mundo. Pedro, apesar de fascinado com os cursos e organização do futebol em Portugal, ainda nutre o sonho de seguir com o trabalho no Brasil.
“O futebol que eu me apaixonei foi o futebol brasileiro, a ginga, o talento bruto. Mas a organização tática está muito mais forte em Portugal. Meu sonho é voltar pro Brasil levando essas ideias de Portugal. Acredito que, misturando esse talento do brasileiro com o conhecimento que venho adquirindo em Portugal, o resultado será muito bom”, avalia.
Varlei pretende ir ainda mais longe. Segundo o treinador gaúcho, Portugal o fez ficar mais próximo do futebol feminino e a experiência o inspira a sonhar com voos altos.
“Sempre gostei dessa parte de formar esportivamente as crianças e adolescentes, mas aqui fiquei ainda mais encantado, especialmente pelo futebol feminino. Quero ainda ficar em Portugal por pelo menos cinco anos para ter uma experiência profissional boa e fazer os cursos, tirar as licenças. Depois disso, já tenho um plano pré-definido que é ir para a Austrália. É um lugar que sempre quis morar e tem o futebol feminino muito forte. Quero acompanhar isso de perto”, diz Varlei.
Para o brasileiro, Portugal é mais que um destino: é uma porta aberta para o mundo.
nuno.tibirica@dn.pt