Diversidade: muito além de Rio e São Paulo, brasileiros vêm “de todo o lado”
Hoje são 615 mil os brasileiros com título de residência em Portugal, vindos de todas as regiões do Brasil.
Texto: Caroline Ribeiro
Basta iniciar uma conversa rápida para que a primeira impressão seja a mesma, sempre. “Já dizem logo ‘é a carioca ali’. Então, eu sou amapaense, né? E eu não deixo passar, eu falo mesmo, faço questão. Digo que eu sou do Amapá, no Extremo Norte do Brasil, área de preservação ambiental, começo a falar várias coisas para que eles saibam que o meu Estado existe.” Quem o diz é a brasileira Glenda Williams, amapaense de 28 anos, que vive em Braga desde 2022. Ela faz parte de uma nova vaga de imigração em Portugal, com brasileiros vindos de fora do eixo Rio-São Paulo.
A mudança da cidade natal, Macapá, capital do Estado de Amapá, foi para ter mais qualidade de vida e aproveitar oportunidades de trabalho. A esteticista e o marido, que é programador, não se arrependem. Encontraram em Braga um pouco do que tinham em casa. “Aqui há muita gente falando o português do Brasil. Por vezes esqueço que estou em Portugal, principalmente no verão, porque o clima é muito parecido com o da minha cidade. Braga também é parecida a Macapá na organização da cidade e tamanho”, conta ao DN.
Se uma parte do imaginário português associa o imigrante do Brasil como tendo origem no Rio de Janeiro ou em São Paulo, a amapaense representa o que já é investigado como a “quarta vaga” da imigração brasileira no país. “Hoje podemos dizer que vem gente de todo o lado”, diz o professor Jorge Malheiros, do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa (IGOT), ao DN. “Continua a vir gente de Minas Gerais, muita gente de São Paulo, do Rio, mas também temos Rio Grande do Sul, Santa Catarina, nordestinos, de Pernambuco, da Paraíba, do Ceará e gente do Norte, que é uma novidade”, explica Malheiros.
De Norte a Sul
Os estudos em Portugal sobre a imigração brasileira marcam o final da década de 80 como a primeira vaga significativa. Foi a altura em que a imagem portuguesa no exterior começou a mudar. “O parente pobre da Europa, o país que exportava imigrantes, o país da ditadura, vai sendo substituído por um Portugal, primeiro, democrático, depois, mais moderno e depois europeu”, explica o docente. A nova imagem causa impacto num Brasil que saía da ditadura para a democracia, com problemas económicos e de desemprego, e traz, maioritariamente, brasileiros qualificados, sobretudo do Estado de Minas Gerais, mas também de São Paulo e Rio de Janeiro. É também a vaga marcada pela chegada massiva dos médicos dentistas.
Após décadas de alternação entre o movimento de pessoas mais ou menos qualificadas, com mais ou menos rendimentos, de Estados mais ou menos conhecidos e até com uma fase de regresso dos desiludidos, a quarta vaga, que marca a atualidade, traz um conjunto diverso, que representa mais fielmente a grandeza de um país de dimensão continental.
O marco para o início desta nova fase é a política. Começa com a destituição de Dilma Roussef da Presidência da República, em 2016, e a instabilidade que surge na transição para o governo de Michel Temer. A polarização e os ânimos acirrados entre os apoiantes do sucessor de Temer, Jair Bolsonaro, eleito em 2018, e Lula da Silva, que vence em 2022, fazem com que a ideia da “terra que ainda vai cumprir seu ideal”, como diz Chico Buarque, fique bem distante. É em Portugal que muitos veem o futuro.
Mudança no imaginário
Hoje são 615 mil os brasileiros com título de residência em Portugal. Os números mais recentes da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA), obtidos em exclusivo pelo DN Brasil, mostram que outros 33 mil foram chamados recentemente para regularizarem a sua situação.
E o que justifica que, ao ouvir o sotaque e tentar adivinhar de onde vem um brasileiro, um português sugira logo tratar-se de um carioca ou paulista, mesmo tendo a comunidade quase 650 mil pessoas no país? É, num primeiro momento, o retrato de uma imagem mediática do “brazuca” que persiste, fruto de décadas de consumo de novelas, músicas e até notícias produzidas em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo.
“A minha perceção é de que a maioria dos portugueses não consegue distinguir o sítio de onde vêm os brasileiros só pelo sotaque ou pela conversa inicial. A maioria olha para o conjunto de pessoas que vêm do Brasil apenas como brasileiros”, explica Jorge Malheiros. “Quando eu falo que nasci lá no Tocantins, as pessoas cá acham que é perigoso, que aparecem cobras de dois metros na sanita ou que existem lá aranhas gigantes”, conta ao DN o digital influencer Cleyton Lavina, de 39 anos.
Natural de Araguaína, cidade no Norte do Estado do Tocantis, ele e o marido vivem em Viseu há dois anos. Mudaram-se depois de terem de encerrar, devido à pandemia, as lojas de cosméticos que tinham.
A proximidade da cidade natal com o Estado vizinho, o Pará, fez com que o tocantinense passasse boa parte da vida na capital, Belém, e adotasse a cultura paraense como sua própria. É assim que hoje diz que “faz a diferença” em Portugal: a desmistificar a imagem que “as novelas da Globo criaram”. “Faço encontros da comunidade paraense cá, mas tenho outros projetos, que vão englobar a cultura brasileira no geral. Quero fazer aquela roda de samba, trazer aquele forró do Nordeste”, conta.
Bem-humorado, o digital influencer acredita que a imagem dos brasileiros em Portugal “já está a mudar”, principalmente com a presença dessa mistura cultural. Algo que o artista plástico e músico Jhon Douglas, de 35 anos, também percebe. Natural de Vilhena, pequena cidade do Estado de Rondônia, dentro da área da Amazónia brasileira, relata que já “existe esse entendimento sobre o Brasil”, mesmo que “algo ainda folclórico” permaneça.
Morando em Lisboa desde 2015, acredita que a vida por cá pode ter, sim, manhãs com pastel de nata, Gal Costa, Caetano Veloso e croissant. Este verso da sua canção autoral Rua das Tretas representa o mix que, para Jhon, nasce como um dos saldos positivos da imigração. “Há quem ache que viemos para atrapalhar; há quem entenda que podemos somar. Na comunidade artística, por exemplo, quando vêm produtores brasileiros e começam a executar trabalhos de uma outra forma, isso motiva também a comunidade portuguesa a realizar algo diferente. É uma cena de integração”, reflete o artista.
No trabalho, Jhon mantém a identidade de “um Brasil profundo”, em referência às suas raízes. Agora é também pai de um “cidadão português filho de estrangeiros”, como consta no B.I. do filho, Sebastião, de um ano. O imigrante ressalta que vai continuar a provocar a nova geração a refletir sobre o que se passa tanto na terra onde nasceram como naquela onde vivem agora. Ele é o exemplo de que é possível manter duas culturas e estar atento aos problemas de ambos os países. “Sou de Rondônia mas vivo os problemas de cá. Este é um período bem ‘maluco’ e a posição dos artistas é bem significativa neste momento. Tento usar todo esse contexto de onde sou e do que estou a passar aqui”, diz, sem tretas.
VAGAS DE IMIGRAÇÃO BRASILEIRA
Primeira
Oficialmente datada por investigadores com início no final da década de 80, traz principalmente pessoas do Estado de Minas Gerais. São profissionais qualificados, como médicos dentistas.
Segunda
No final da década de 90 chegam brasileiros com menor nível de instrução profissional, que vão trabalhar para a construção civil, serviços gerais e comércio. A Área Metropolitana de Lisboa e o Algarve tornam-se destino, por concentrarem obras de grandes projetos.
Terceira
Em 2012, com as medidas para recuperação da crise económica, chegam cada vez mais empresários e investidores de alto nível, muito atraídos pelos vistos gold. Mas são os estudantes que ganham destaque, com a criação do Estatuto do Estudante Internacional, em 2014, e passam a encher as universidades de norte a sul.
Quarta
A vaga da diversidade traz pessoas de vários Estados, com vários níveis de formação e áreas profissionais, motivada pela sensação de insegurança crescente no Brasil, descontentamento com a situação económica e a política. Começa na transição dos governos Dilma-Temer.
caroline.ribeiro@dn.pt