Dedicação: cursinho à noite em Lisboa prepara para prova que certifica o Ensino Médio
Aos 73 anos, o brasileiro Luis Monteiro cursa o Mestrado em Química e Bioativos Naturais na Universidade Lusófona, em Lisboa. Fora do horário das aulas, o imigrante é professor auxiliar da licenciatura em Beleza e Bem Estar na mesma instituição, além de abrir espaço, entre um compromisso e outro, para uma missão informal importante: ajudar com aulas de Matemática no curso preparatório gratuito para a prova do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) aplicado no exterior. Luís conhece bem a prova. Foi graças à aprovação no exame, em 2018, que pôde continuar o sonho de seguir na carreira acadêmica em Portugal.
Tal como tantos outros milhões de brasileiros, Luis deixou a escola adolescente e foi logo trabalhar. Acabou aprendendo ofícios ligados à mecânica e construção civil, área na qual conseguiu trabalho quando mudou de país, em 2000. “Comecei como ajudante de pintor”, conta o paulista ao DN Brasil sobre o primeiro emprego em Lisboa. “Um dia, comprei um jornal e vi lá o anúncio de um curso de reflexologia. Achei interessante e falei: vou fazer! Na mesma escola, tinha um curso de massagem terapêutica, resolvi tirar esse também. Quando estava no meio do curso, comecei a formação em Naturopatia”, lembra.
A rotina, no entanto, não era fácil. “Eu saia de manhã e ia pra obra distribuir o serviço pro pessoal e de lá ia para as aulas de massagem. Saia da massagem, ia para casa, almoçava e voltava pro trabalho. Trabalhava até às 05:00 da tarde, ia para casa tomar banho pra aula de Naturopatia, que era a noite. Chegava em casa 23:30, ficava estudando até 01:00 da manhã, que era para não deixar a matéria atrasada”, relembra o imigrante, que narra todo esse percurso, de persistência e dedicação, com um entusiasmo contagiante. Foi para terminar o curso de Naturopatia que precisou dar um jeito na pendência escolar que ficou no Brasil. “Sempre quis terminar o Ensino Médio e precisava do certificado de conclusão do 12.º ano português para contar os pontos para a carteira profissional de Naturopata”, explica.
Aulas todos os dias
O Encceja foi criado pelo Governo brasileiro em 2002, inicialmente com provas aplicadas apenas no Brasil. Anos depois, passou a ser realizada a versão Encceja Exterior, para brasileiros em outros países. Com a aprovação no exame e o certificado de conclusão do Ensino Médio, os brasileiros podem pedir a equivalência ao Ensino Secundário, o que garante o diploma do 12.º ano em Portugal. Procedimento que Rita Oliveira fez em 2018. “Foi uma experiência fantástica”, diz a mineira sobre o cursinho. “Naquela época, fazia uns 30 anos que eu não estudava”, relembra.
As aulas em Lisboa são de segunda a quarta-feira a partir das 19:00. Nas quintas e sextas, há palestras com convidados, tudo numa sala no campus da Universidade Lusófona.
O curso tem uma abordagem que busca atender melhor o perfil dos alunos. “Aplicamos uma metodologia ligada a Paulo Freire. O professor faz uma troca de sinergias, de conhecimento. Porque o aluno já é adulto, traz muita história, muita bagagem. O professor trabalha para colocar para fora essa bagagem e o aluno poder associar o aprendizado à vida cotidiana, que é o perfil das provas do Encceja”, explica ao DN Brasil a coordenadora do curso, Rejan Lima. “São professores extremamente especializados e todos voluntários, que fazem um trabalho brilhante”, completa.
O curso está sempre em busca de novos profissionais para dar aulas, em todas as áreas. Uma das professoras, a carioca Beatriz Gomes é voluntária há quase três anos. “Eu não queria perder a prática da sala de aula”, diz ao DN Brasil sobre o motivo inicial que a levou a procurar o curso. Professora de História, Beatriz não esconde o orgulho pelos alunos. “Faz mais bem a mim do que eu faço a eles. Entro para dar aula e saio como se tivesse feito uma terapia. Recebo depois o feedback quando passam na prova, chorando, agradecendo pelo empenho, isso é muito gratificante”, conta.
O capixaba Nilson Pereira vai fazer o Encceja pela segunda vez este ano, mas é novato no curso. Técnico em prótese dentária, não conseguiu evoluir na profissão em Portugal por não ter o Ensino Médio. “No Brasil você aprendeu a trabalhar e está feito. Aqui não, tem que ter curso superior. Por isso que eu estou lutando até hoje para concluir. Eu fiz um curso aqui que me dá o direito de trabalhar como auxiliar de dentista, mas há colegas que já passaram, ganham mais”, conta ao DN Brasil.
O conteúdo do curso é segmentado de acordo com a divisão do exame, que é composto por quatro provas objetivas, cada uma com 30 questões de múltipla escolha, e uma redação. As provas são divididas por áreas do conhecimento: Ciências da Natureza, que engloba Química, Física e Biologia; Matemática; Linguagens e Códigos, onde entram a Língua Portuguesa, Língua Estrangeira, Artes e Educação Física; e Ciências Humanas, com História, Geografia, Filosofia e Sociologia. O candidato precisa ser aprovado nos quatro módulos para obter o certificado de conclusão do Ensino Médio. Caso não passe em algum, pode refazer a prova apenas para o módulo em falta, caso de Nilson, que está “devendo” apenas Matemática.
Recorde em Portugal
Em Portugal, o exame foi realizado pela primeira vez em 2014. “Começou pelo Japão, muito forte, lá já são 20 anos de Encceja. Depois foi para a Suíça, Alemanha e veio para Portugal, quando aumentou o número de imigrantes e viu-se a necessidade de que eles, que não tinham esse acesso à educação, ampliassem seus estudos”, explica Rejane Lima. Em 2024, a prova foi realizada em 17 cidades no exterior e Portugal foi o país com maior número de inscritos, segundo dados do Ministério das Relações Exteriores enviados do DN Brasil: 352 brasileiros realizaram o exame. Foi a primeira vez que o país assumiu a liderança em participações.
Para este ano, a meta é que mais alunos participem do cursinho e da prova. Rejane já teve uma reunião com Alessandro Candeias, cônsul-geral do Brasil em Lisboa, que manifestou apoio à iniciativa. As aulas não têm nenhum custo e não há requisitos para participação. Para se matricular, basta ir à sala do curso, no edifício S da universidade, no horário da aula, ou entrar em contato através das redes sociais do Encceja Lisboa. Para professores que querem se voluntariar, o procedimento é o mesmo.
Para a coordenadora, o Encceja é uma chance de “dar uma qualificação da mão de obra, uma qualidade de vida, uma inserção social maior, um trabalho melhor, porque na Europa o 12.º ano a maioria já tem”. Consciente do desafio, Nilson, aos 65 anos, promete que vai se dedicar aos estudos até a chegada da prova, prevista para o final do segundo semestre. “Depois, quero fazer aqui a Licenciatura em Teologia”, revela, já que também é pastor em uma igreja. Planos que contam com o apoio da turma, a bênção divina e a força de vontade de quem quer alcançar o melhor.
caroline.ribeiro@dn.pt
O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil.