De estagiário ao topo da cozinha: jovem brasileiro é destaque em restaurante com estrela Michelin
"Na questão da comida talvez, acho que eu estou mais virado para o lado português. Mas por exemplo, no esporte, cultura, outras coisas talvez seja mais ao lado do Brasil. Sou corinthiano roxo, por exemplo".
Texto: Nuno Tibiriçá
O paulistano Vitor Taiki tem uma mistura de culturas que moldam sua vida e trabalho. Com 14 anos, o então adolescente e a irmã se mudaram de São Paulo para Lisboa, cidade onde, agora aos 28 anos, já dedicou metade de sua vida. Com descendência japonesa por parte dos avós paternos, Vitor absorveu a cultura portuguesa na sua vida, trabalho e até no sotaque, mas sem esquecer sua origem- tanto que continua torcendo para o Corinthians.
Após estudar gastronomia e passar por estágios em diversos restaurantes de alto gabarito em Portugal, Vitor este ano completa quatro anos de trabalho no Cura, estabelecimento de Estrela Michelin e um dos mais conceituados de Lisboa. Ao DN Brasil, o chef conta sua trajetória e sobre como é trabalhar no estrelado restaurante do chef Pedro Pena Basto.
Você é brasileiro, mas o sotaque já engana. Quando chegou aqui?
Sou uma mistura do Brasil, de Portugal e tenho influência japonesa também, como dá para ver pelos olhos. E já estou cá há 14 anos, como eu frequentei a escola aqui, acabei pegando esse sotaque português. Eu não quero perder o meu sotaque brasileiro mas, ao mesmo tempo, também quero me comunicar de forma melhor. Até com o pessoal daqui do restaurante também, então fica nesse meio caminho.
Seus pais nasceram no Japão?
Não, mas a família toda do meu pai veio do Japão para o Brasil, bisavô, avô, migraram para São Paulo e construíram a vida lá. Então é uma família muito ligada às tradições japonesas, meus primos falavam japonês, minha avó fazia comida japonesa… acho que essa minha relação com a culinária vem muito da infância e de ver ela cozinhar também.
Como começou na cozinha aqui? Fez curso?
Depois do ensino médio, fiz um curso de um ano e meio, na escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa. Depois comecei a fazer estágios, o primeiro foi no Alma, duas estrelas Michelin, depois passei por Okah, Carmo e ainda fiz um estágio na Antuérpia, na Bélgica num restaurante chamado The Jane, também duas estrelas. E há quase quatro anos estou aqui no Cura.
Como funciona o processo de contratação em um restaurante de tão alto gabarito como o Cura?
No meu caso foi muito simples, quando vi nas redes sociais que eles precisavam de gente, me candidatei logo. Marcaram uma entrevista, que por acaso foi com o Pedro (Pena Bastos, chef do Cura) e me demos muito bem, nossas ideias bateram. Eles fizeram uma proposta e em dez dias comecei a trabalhar aqui. Também como estava entrando em uma posição mais baixa, não tive que fazer propriamente um teste prático. Era um processo mais simples na altura. Hoje em dia já fazemos esse teste para os estagiários que vem trabalhar conosco.
Metade da vida em Portugal, outra metade no Brasil. Você se considera mais de onde?
Essa é uma pergunta boa, porque acho que eu nunca pensei sobre isso. Não sei. Eu acho que eu algumas coisas eu me considero muito brasileiro e em outras coisas eu me considero um bocado português. Na questão da comida talvez, acho que eu estou mais virado para o lado português. Mas por exemplo, no esporte, cultura, outras coisas talvez seja mais ao lado do Brasil. Sou corinthiano roxo, por exemplo.
Porque se identifica mais com a culinária portuguesa? Diz na questão da técnica ou é a que prefere comer?
Eu gosto muito da culinária brasileira até porque foi onde eu cresci. Mas o que eu mais gosto aqui na culinária portuguesa, é a questão da sustentabilidade, de podermos usar o peixe que é nosso, os vegetais nossos, os produtos locais, da época. Acho que nós escolhemos muito bem isso aqui. E no Brasil, em algumas zonas, principalmente na minha zona, eu tenho acesso a muito poucos ingredientes. Em São Paulo é muito difícil ter acesso a um peixe de qualidade, por exemplo. E isso aqui, tudo o que eu tenho em mãos, pra mim é muito satisfatório. Ainda mais pela minha profissão. A quantidade de recursos que Portugal oferece é enorme.
E no Brasil, em algumas zonas, principalmente na minha zona, eu tenho acesso a muito poucos ingredientes. Em São Paulo é muito difícil ter acesso a um peixe de qualidade, por exemplo. E isso aqui, tudo o que eu tenho em mãos, pra mim é muito satisfatório. Ainda mais pela minha profissão. A quantidade de recursos que Portugal oferece é enorme.
Onde costuma comer em Lisboa? É mais da tasca ou do fine-dining? Qual um dos seus restaurantes favoritos?
Acho que existem dois tipos de comida no mundo: a boa e a má. Eu gosto de fine dining, mas muito de vez em quando, até porque não tenho condição financeira para ir num fine dining toda hora (risada). E porque eu adoro tascas também, no fundo é encontrar um equilíbrio. Uma das que eu mais gosto é a Tasquinha do Lagarto, em Campolide.
Muitos brasileiros que vêm para Portugal acabam por trabalhar na restauração. Qual dica você dá para alguém conseguir ter sucesso na área?
É uma área muito complicada: costumo dizer que a gente ama ou a gente odeia. A gente tem uma carga horária muito forte, às vezes até uma carga psicológica bastante grande também. A dica que eu dou sempre é: entenda o mercado, para quem você vai cozinhar, isso no caso de um chefe de cozinha. E resiliência, todo dia é um dia novo. E num dia que corre mal você não é o pior do mundo. E num dia que corre bem você também não é o melhor do mundo. Há várias formas de evoluir na cozinha. Acho que a mais fácil e a que dá sempre resultado é o trabalho. Quanto mais você trabalha, mais você se empenha. Parece muito clichê. Mas é verdade essa. Geralmente o pessoal passando algum tempo de cozinha já começa a se acomodar em algumas áreas, já não tem tanto interesse em aprender mais, estagiar. Por isso que é importante nós estarmos sempre em constante evolução, se manter atualizado.
É uma área muito complicada: costumo dizer que a gente ama ou a gente odeia. A gente tem uma carga horária muito forte, às vezes até uma carga psicológica bastante grande também. A dica que eu dou sempre é: entenda o mercado, para quem você vai cozinhar, isso no caso de um chefe de cozinha. E resiliência, todo dia é um dia novo.
Tem muita gente que fala que a cozinha é uma guerra. Como você desconstroi essa ideia?
Cozinha é organização e só. Posso te garantir que no Cura nós nunca falamos alto, até porque temos uma cozinha aberta, não podemos ficar aqui gritando uns com os outros. Na cozinha o que nós queremos é respeito. E acho que se há pessoas que trabalham em cozinhas assim, que são tóxicas, o mental daqui uns tempos vai por água abaixo. Então é importante procurar um lugar estável, um chefe que você confie, porque vai ser difícil, vai ter horas a mais, vai ter muita coisa para fazer. Aqui no Cura tentamos aplicar isso. Claro que há hierarquias que respeitamos, mas o nosso serviço em si, o nosso dia a dia é muito tranquilo. Chamadas de atenção e puxões de orelhas fazem parte de qualquer trabalho, mas tem que ser de uma forma mais leve. Nós não queremos mandar ninguém abaixo, não queremos que ninguém esteja aqui mal. Digo isso porque já tive experiências com chefs mais da “velha guarda” aqui e afirmo: a cozinha autoritária para mim não funciona.
Onde imagina seu futuro? Em Portugal, no Brasil ou em outro país?
Penso em ficar por aqui sim. Tenho saudades, claro, da minha terra, é normal, mas nesse momento eu não vejo eu voltar para lá, já estou acostumado com Portugal, é complicado. No futuro, penso em abrir o meu próprio espaço aqui, é impossível não pensar nisso. Mas, mas ainda falta muito tempo, tenho muita coisa para aprender e para absorver. E por isso, baby steps.
Nessa mistura entre Brasil, Japão em Portugal. Consegue falar um prato predileto de cada país? Ou que está entre os favoritos?
Do Brasil, acho que o mais simples possível: pastel de vento de queijo, com uma boa pimentinha caseira e caldinho de cana com gelo e bastante limão. Em Portugal, escolheria uns percebes [um tipo de marisco] abertos em água e sal, com um dentinho de alho e coentro, ou umas gambas ao alho, que quando bem feitas são muito boas. No Japão, há mesmo muita coisa, mas vou pelo maior prato de memória afetiva que tenho e que eu amava demais: quando eu ía para a casa dos meus avós e nós comíamos ramen, com massa de udon. E eles deixavam ali na mesa a panela com a massa, o caldo, o omelete, a cebolinha, a carne para irmos montando. Não tem como não dizer a um ramenzinho da avó.
nuno.tibirica@dn.pt