Brasileira revoluciona a cultura de circo em Portugal
Entusiasta e profissional circense, a paulista Juliana Moura criou, ao lado de mais dois portugueses, o Instituto Nacional da Arte do Circo (INAC). Desde então, a disciplina tem ganhado cada vez mais espaço no país. “Antes, não era reconhecido como uma arte aqui”.
Texto: Nuno Tibiriçá
Acrobatas, contorcionistas e malabaristas ainda buscavam seu lugar ao sol em Portugal quando a paulista Juliana Moura, 39, desembarcou no país há 14 anos. Nascida em Santo André (SP), Juliana cresceu em Resende (RJ) e, aos 19 anos seguiu para a capital fluminense, onde se graduou em Dança pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (RJ) antes de se mudar para Portugal. Há mais de uma década por aqui, o sotaque já quase esconde a sua origem.
“Já não sei mais o que é esse sotaque, quando vou ao Brasil acham que eu sou de fora, mas aqui também não reconhecem como um sotaque português. Fiquei no meio do caminho”, brinca Juliana em entrevista ao DN Brasil.
Quando chegou ao Rio de Janeiro, Juliana viu a possibilidade de fazer a sua graduação em regime pós-laboral. Era a brecha que precisava. Ao mesmo tempo que fazia o curso, ela começou a dar seus primeiros passos no que se tornou sua paixão e ganha pão hoje em dia: o circo. Foi estudar na Escola Nacional do Circo, na Praça da Bandeira, centro do Rio, e, após concluir os estudos em 2010, resolveu embarcar em uma aventura para a Europa.
O destino escolhido foi Portugal, mais especificamente a cidade de Chaves, onde o companheiro à época, músico, conseguiu trabalho em uma academia artística. Na área do circo, no entanto, o cenário era pouco animador. “Naquela época, 2011, 2012, haviam poucos artistas que faziam parte da comunidade do circo aqui em Portugal. Isso porquê faltava tudo, não existia mercado de trabalho, espaços físicos para trabalhar, etc”, relembra a brasileira.
Foi quando Juliana conheceu o português Bruno Machado, também artista circense, que a ideia de construir uma escola de circo por aqui começou a ganhar forma. Os dois começaram a trabalhar juntos e a elaborar um projeto acerca de um instituto de profissionalização circense no Norte de Portugal. Antes disso, Bruno havia feito uma parte da formação em Lisboa, no conhecido e renomado Chapitô, em Alfama, e outra fora do país, assim como a maioria dos portugueses da área.
Da parceria de trabalho entre os dois - que depois virou amor, estão casados - surgiu uma companhia circense. Em 2017, foi oficialmente aberto o Instituto Nacional das Artes do Circo (INAC), em Famalicão, a primeira escola profissionalizante da região Norte de Portugal. No bom português, uma espécie de faculdade do circo.
“Havia essa lacuna em Portugal, e pensamos: vamos pôr a mão na massa, porque se ninguém fizer, acho que o governo não está muito preocupado em criar aqui esta formação artística. Então, foi uma iniciativa nossa, minha e dele, mas que depois teve muito apoio dos colegas artistas, de uma geração que tinha que sair de Portugal para fazer a formação e que hoje, com o INAC, não precisa”, afirma Juliana.
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Ela reconhece, no entanto, que o conceito nômade do circo, faz com que a maioria dos participantes do INAC sejam de outros países, com poucos portugueses em cada turma que é formada. “Eu tenho aqui todos os continentes reunidos e acho isso uma maravilha. Temos alunos dos Estados Unidos, do Canadá, da Argentina, Chile, México, Costa Rica, Brasil, França, Espanha, Alemanha, Austrália, Cabo Verde… ano passado, tivemos até um artista da Malásia, é uma delícia isso”, lista Juliana com alegria, antes de prosseguir com o que entende ser o motivo de haverem poucos portugueses. “Acho que o circo bebe muito dessa fonte nômade e multicultural, isso faz parte do circo. A pessoa que escolhe fazer circo é uma pessoa automaticamente também muito curiosa com essa mistura toda”, ressalta.
Emprego e exemplo
Sete anos depois da abertura, o INAC se consolidou em Vila Nova de Famalicão e virou exemplo para todo o país. Atualmente, são mais de 35 pessoas na estrutura da escola, sendo 18 professores de artes circenses, além de todos profissionais de back-office, como os de contabilidade, marketing, mídia e a própria direção, que conta, além de Juliana e Bruno, com o também português André Borges. O plano de formação da escola tem dois cursos, um com duração de um ano e outro com dois e o INAC recebe cerca de 75 alunos por ano, 25 por turma.
Qualquer pessoa acima de 18 anos pode participar, lembrando que, assim como uma faculdade, embora não seja reconhecido como tal, estar inscrito no INAC também envolve o pagamento de propinas, a mensalidade pedida nas instituições de ensino em Portugal. Juliana aponta que, em média, os estudantes do instituto estão inseridos na faixa etária entre os 18 e os 30 anos e destaca um fator importante da escola: a inclusão.
“Uma das nossas principais bandeiras é o trabalho inclusivo através da arte, acreditamos na formação artística inclusiva: temos alunos com Síndrome de Down, com neurodivergências e isso nunca foi um problema para o INAC, pelo contrário. Se a pessoa está disponível e quer trabalhar, isso só agrega para todos”, ressalta a brasileira, que lista outras atividades da escola como residências artísticas e parcerias feitas com câmaras municipais que resultaram em festivais como o Bo, em Trás os Montes e o Cúpula Circus Vila Festival, que ocorre em Vila Nova de Gaia.
Para Juliana, o trabalho ali feito vai além da escola em si, mas em levar o conceito de circo para outro patamar em Portugal, coisa que só sonhava uma década atrás, quando a criação de algo parecido com o INAC era mero projeto. “Não é à toa que no mesmo ano que criamos o instituto, o Ministério da Cultura reconheceu o circo como elegível para apoios. Antes disso, não era reconhecido como uma arte, então de alguma maneira nós fomos abrindo a porta e criando um caminho de que era possível o circo ter mais protagonismo em Portugal”, diz Juliana.
Segundo a brasileira hoje em dia o INAC tem apoio do Ministério da Cultura, embora reclame de uma passividade do Ministério da Educação. “Acho que não dá o devido valor. Estamos na luta há oito anos, somos uma instituição de ensino privada como qualquer outra… acho que nesse sentido, de reconhecimento, o Brasil está muito à frente. Além de ter a Escola Nacional, que é apoiada pelo Governo, tem os apoios para as famílias de circo, para os circos tradicionais. Seria muito importante ter isso por aqui”, afirma.
Novo espétaculo e turnê pelo Brasil
A partir da próxima semana, mais precisamente no dia 30 de novembro, o INAC estreia um novo projeto, o “Circo de Papel”, nome da tenda do grupo, ou da “família”, como diz Juliana. O primeiro espetáculo do projeto será Histórias de Maria, que será exibido em Vila Nova de Famalicão, a casa do INAC, até o dia 5 de janeiro. São cinco atores no elenco, sendo três estrangeiros e dois portugueses e tem como embaixador o apresentador de televisão e ator luso João Mazarra.
Para 2025, há um projeto pavimentado e que promete dar ao INAC um outro gabarito. Juliana revelou que um outro espetáculo, Ponto de Partida, está em conversações avançadas para ter uma turnê no Brasil. Um momento que a paulista espera com vísivel e compreensível entusiasmo.
“Faz todo o sentido, pela questão óbvia da relação Brasil-Portugal como um todo, mas também no circo. Curiosamente, quando o circo era o único espaço de entretenimento, muito antes do teatro, houveram muitas famílias de circo que foram para o Brasil, ou que foram para lá, enfim, existem histórias fantásticas. Vamos ver, o INAC agora é uma instituição mais madura, temos uma rede forte no Brasil, em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Recife. Para mim seria uma honra voltar e partilhar com os meus conterrâneos o que construí por aqui”, finaliza Juliana.
Confira mais fotos do INAC.
nuno.tibirica@dn.pt
Este texto está publicado na edição impressa do Diário de Notícias desta segunda-feira (18).