Crônica: qual o tempo e o lugar?
"Lisboa me abriga enquanto atravesso lutos, reviso prioridades, pago as despesas, trabalho, canso, viajo, penso que não, penso que sim"
Texto: Cristina Fontenele
Completo seis anos de Lisboa em agosto e, assim como muitos imigrantes, a cada ciclo, é comum sentir um misto de realização e nostalgia. Nesses marcos, revisitamos as escolhas e passamos a vida a limpo, numa equação nada simples do que aprendemos em Matemática. Somamos, subtraímos, dividimos e multiplicamos de tudo um pouco.
“Por que mudar de país?” “Pra que recomeçar do zero?” “É muita coragem!” “Cuidado para não se arrepender!” “Volta quando?” - são frases que escutei e recordo em dias nublados.
Em outra terra, que não a do sol (como é conhecido o meu amado Ceará), experimento um viver em múltiplas dimensões: saudade, dúvida, descoberta, alegria, impermanência. Pratico o exercício de deixar ir, ceder, calar, transpor as barreiras desta condição de estar distante do que ainda reconheço como casa.
Cresci buscando estabilidade, acreditando que os verbos ficar, permanecer, assentar, eram os corretos de um existir maduro. “Não inventa moda, menina.”, dizia minha avó. Eu desejava uma vida em linha reta, sem sobressaltos. Imagino que muita gente também.
Vivi 29 anos na mesma casa e neste período acreditei que meu endereço e número de telefone seriam eternos. Tempos regulares, pensamento analógico. Entretanto, após minha primeira separação, a vida tornou-se puro movimento: mudar, reconstruir, reinventar, redescobrir, ousar, foram os novos verbos conjugados pela estrada.
Desvios, cumes e vales me mostraram uma topografia de vida mais real, de quem não tem tudo sob controle e precisa ajustar a vela quando a maré ganha força. Se é que temos algum tipo de controle. Desde então, já morei em 14 casas, 4 cidades e 1 país além do meu.
E mesmo assim, percebo que ainda me reconcilio com a culpa, sorrateira, por realizar meus movimentos. Olhares e palavras com jugo de “perdida”, “instável”, “indecisa”, somaram-se ao diálogo interno em algum momento da caminhada. Já ouviu algo do tipo por aí também?
Mas de onde vem esse ímpeto de arriscar? Visito a árvore genealógica, mas não é preciso recuar muito. Quando dediquei o olhar para meu pai, percebi que ele fora um andarilho - procurou ouro na Serra Pelada, perdeu-se por um mês na selva amazônica, entre outras tantas aventuras dignas de livro. Ele gostava de desbravar e se refazia como peças de lego, montando novos desenhos de si e outros jeitos de brincar com o destino. Senti mais paz ao acolher esse lado parental leve e livre. Como diz minha tia, “sangue não é água”.
As pessoas migram por sonhos, por sobrevivência, por aventura. Vestem-se de coragem ou de ilusão. Emigrei movida pela curiosidade de viver uma experiência internacional. Incentivada pelo ex-marido (agora do segundo casamento), tirei o projeto da gaveta. Porém, e há diversos poréns, deixar para trás uma vida estruturada, o conforto do conhecido, exigiu o fôlego da juventude e a humildade de voltar para o final da fila quando há tempos eu avançava de posição. Quarentei nas terras lusitanas e não foi nada lúdico.
Será que houve algum tipo de fuga pessoal inconsciente? Foi acertado? As respostas variam bastante ao longo desses anos, a depender do clima e do humor. E o calor dos últimos dias, por exemplo, está a tirar o fôlego e as certezas.
Mas afinal, qual o nosso tempo e lugar em meio ao vai e vem de arroubos, ancestralidade, e relacionamentos? É possível refazer nossos sonhos em outra terra? Sempre é tempo de ultrapassar medos e realizar desejos?
Por aqui, as respostas vêm num habitar vagaroso. Lisboa me abriga enquanto atravesso lutos, reviso prioridades, pago as despesas, trabalho, canso, viajo, penso que não, penso que sim.
Estar imigrante tem sido um convite diário a um estado de coragem e permissão. E por aí, como vai seu tempo neste lugar?
Cristina Fontenele é escritora brasileira, com especialização em Escrita e Criação. Autora de "Um Lugar para Si - reflexões sobre lugar, memória e pertencimento”, além de jornalista e publicitária. Escreve crônicas há quinze anos e, como típica cearense, ama uma rede e cuscuz com café bem quentinho.