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Crônica: o presente que nos visita
Área de desembarque no aeroporto de Lisboa. Foto: José Carmo / Global Imagens.

Crônica: o presente que nos visita

"Para receber as visitas, a gente muda a rotina e se converte em guia, historiador, comentarista, sommelier, desdobra-se para apresentar nossa nova vida em vinte e quatro horas".

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por DN Brasil

Texto: Cristina Fontenele

“Até a próxima. Nos vemos em breve e case com ela, hein?!”, despedem-se dois casais, com idade já passando dos 25 anos, com o sotaque mineirim hospitaleiro. Abraços e piadas para dizer que não sabem quando irão se rever, mas que valeu cada segundo passado juntos.

Era um domingo daqueles onde há um sol para cada cabeça, final de verão europeu, no meio da rua Augusta. No mesmo dia, eu também tinha recebido minhas visitas. Duas amigas cearenses, verdadeiro presente em forma de gente. Para quem é imigrante, o coração aos saltos manda avisar que a chegada de um parente ou amigo é um pedaço de casa a peso de ouro.

Para receber as visitas, a gente muda a rotina e se converte em guia, historiador, comentarista, sommelier, desdobra-se para apresentar nossa nova vida em vinte e quatro horas. Um verdadeiro pitch que se resume em atualizar as fofocas, contar os prós e os contras do cotidiano, além de exibir o porquê moramos aqui. Entre um passeio e outro, escutamos as notícias da nossa terra, em que parece que nada mudou e ao mesmo tempo muito aconteceu na nossa ausência.

Vivemos um ano em poucos dias, correndo ladeira acima e abaixo, satisfazendo os convidados com pastel de nata, bacalhau, fado e ginginha. Haja disposição, joelho, além de ficarmos a repetir o lema: “Você está dormindo em euro, precisa aproveitar. Descansa quando voltar para casa”.

Já no aeroporto, sentimos a expectativa boa que é ver desembarcar caras tão familiares e queridas. Aliás, aeroporto é recanto de emoção. Há despedida, reencontro, surpresa, tentativa, esquecimento, recomeço. Aeroporto é também lugar de memória. Lembro-me de quando cheguei, há seis anos, meio letárgica da longa viagem, ainda sem acreditar na ousadia que estava realizando. Uma pasta cheia de documentos, uma carta-convite e a cabeça dividida entre dúvidas e coragem.

No domingo pela manhã, o aeroporto lotado indicava uma Lisboa em pleno movimento turístico. Os receptivos disputando espaço com crianças, grupos de excursão, pets, portugueses e imigrantes. Uma gestante deixa o outro filho nascido saltar em direção ao pai que acabara de chegar. Ambos colam o rosto e se fazem acolher. Uma jovem acena agitada e corre ao encontro de quem parece ser família. Solta gritinhos e risadas sob baixo controle. Estariam há muito tempo sem se ver ou era o tipo de pessoa efusiva que celebra toda reunião?

Para quem é imigrante, o coração aos saltos manda avisar que a chegada de um parente ou amigo é um pedaço de casa a peso de ouro.

Observo os movimentos, divirto-me a imaginar as histórias de cada indivíduo, o que o volume da bagagem revela. Esse rapaz chegou para morar ou veio abastecer com encomendas da terra natal os que aqui residem? O portão abre e vejo minha cota de encanto surgir de máscara, sacolas e sorrisos. Também aceno agitada, indicando que se dirijam para a esquerda, ao fim do corredor, parecendo eu um guarda de trânsito.

Enfim, damos o abraço apertado tão esperado como se tivéssemos nos visto ontem, típico sinal de amizade com mais de década. Começamos a planejar o dia, o tempo será curto para tanta saudade. Precisamos fazer render as próximas horas. O cansaço vai ter que esperar.

Serão momentos de ânimo renovado que durarão por meses, ajudando-nos a atravessar os tempos de hesitação. Quando os hóspedes vão embora, fica a esperança em dias melhores, a bateria de afeto preenchida e aquela alegria de sentir que temos história e vínculo. Não nascemos ontem, mas renascemos a cada visita.


Cristina Fontenele é escritora brasileira, com especialização em Escrita e Criação. Autora de "Um Lugar para Si - reflexões sobre lugar, memória e pertencimento”, além de jornalista e publicitária. Escreve crônicas há quinze anos e, como típica cearense, ama uma rede e cuscuz com café bem quentinho.

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