Crônica: o próximo, se faz favor
A imagem da pessoa-polvo, que gira diversos pratos, assobia e chupa cana ao mesmo tempo, não vale aqui em Portugal. E este pode ser um dos comportamentos de maior “choque” quando se chega do Brasil. Fazer uma coisa por vez.
Texto: Cristina Fontenele
- Percebeu o que eu lhe disse? - perguntou a farmacêutica ao senhor de quase 80 anos, aumentando a voz três tons acima do seu habitual.
- Não…
- Se não lavar com a pastilha, vai ficar com afta outra vez. Como se chama?
- José. Escreve aqui como hei de fazer. - pediu o cliente, no seu tom e ritmo próprios.
- Coloca uma pastilha na água e depois coloca a placa…
Uma fila ia se aglomerando na farmácia que, em geral, dispõe de dois atendentes a cada turno. Meu número era o 34 e o visor tinha parado no 28. Pelos meus cálculos, iria levar pelo menos 30 minutos para ser atendida. E, me baseando no senhor José, poderia ser ainda mais tempo.
Aquém ao volume de pessoas à espera, a farmacêutica prestava seu atendimento com dedicado esforço para se fazer entender. Era como se naquele balcão só existissem os dois em conversa infinita.
- Três dias?
- Não, três vezes por dia. - explicou a funcionária enquanto anotava as instruções na caixa do medicamento.
- Por fora também?
- Não, só por dentro.
Não interessava se os outros estavam com pressa, se aproveitaram a hora do almoço para resolver pendências, se estavam tão doentes quanto o senhor José. A cada cliente, o seu devido atendimento.
Não havia espaço para: “só uma pergunta, por favor.”; “pode ir mais rápido”; “estou sem tempo”. Tínhamos que esperar a nossa vez, sem interrupções mínimas. É simples assim: se seu número ainda não foi chamado, espere. Isto vale para farmácia, talho, pastelaria, serviços públicos e privados. Vale para as filas da vida.
A imagem da pessoa-polvo, que gira diversos pratos, assobia e chupa cana ao mesmo tempo, não vale aqui em Portugal. E este pode ser um dos comportamentos de maior “choque” quando se chega do Brasil. Fazer uma coisa por vez.
Não podemos nem precisamos fazer várias coisas ao mesmo tempo, me respondeu uma amiga brasileira quando perguntei o que ela aprendeu na convivência com os portugueses. A resposta parece lógica, mas é um paradoxo quando se vive a cultura da pressa e do imediatismo.
O relatório? Era pra ontem. A reunião? Daqui a dez minutos e em seguida teremos a prestação de contas. Já enviou as informações para o cliente? Terminou a apresentação da proposta? Lembre-se: o evento é hoje, às 19h. Amanhã, bem cedo, precisa passar no cliente para deixar a encomenda. O gerente espera o projeto finalizado até quarta, não atrase. Ufa, temos dado conta?
Caminhamos enquanto enviamos e-mails pelo celular, completamos a maquiagem a cada parada do carro no semáforo, lemos um livro enquanto subimos as escadas (haja coordenação), respondemos o whatsapp durante o jantar com amigos, almoçamos vendo reels e, neste momento, pode ser que haja várias abas abertas no seu computador com assuntos por finalizar. Não há tempo a perder. Afinal, não somos múltiplos?
Será que reparamos nas novas flores que brotaram pelo caminho enquanto estávamos de olho no celular? Qual foi a piada que os amigos riram tanto na noite de ontem? O almoço tinha sabor de que mesmo?
Uma lenda, contada em rodas terapêuticas, prega que, ao nos dirigirmos para algum local, a primeira a chegar é a nossa mente, ansiosa pelo controle, depois comparece o nosso corpo e, só por último, algum tempo adiante, nos alcança nossa alma para se reunir com os demais - mente e corpo. Parece que vivemos em descompasso.
Existe algum momento em que conseguimos sincronizar mente, corpo e alma? Os portugueses parecem saber o segredo. Concentrar-se em uma tarefa por vez seria o caminho?
- Percebeu como fazer?
- Penso que sim. - confirmou o senhor José.
- Se tiveres dúvidas, volta cá. O que não pode é teres mais aftas. - aconselhou a farmacêutica.
- Muito obrigado.
- Precisa de saco?
- Não, não. Adeus, com licença.
Enquanto o senhor José se despedia, pensei que jamais iria tomar todo aquele tempo e retardar a vida alheia. Imagina. Ainda tinha uma lista de atividades a cumprir e o dia esgotando.
- O próximo, se faz favor. - chamou a farmacêutica após o som do visor indicar o número 34.
- Olá, boa tarde. - respondi cortês.
- Como posso ajudá-la?
E lá estava eu pedindo conselhos sobre como dormir melhor, perguntando qual a diferença entre medicamento X e Y, se havia uma vitamina D mais barata e esquecendo por completo que o visor tinha parado no número 34. Ups. Tinha chegado a minha vez no balcão de conversa infinita.
Cristina Fontenele é escritora brasileira, com especialização em Escrita e Criação. Autora de "Um Lugar para Si - reflexões sobre lugar, memória e pertencimento”, além de jornalista e publicitária. Escreve crônicas há quinze anos e, como típica cearense, ama uma rede e cuscuz com café bem quentinho.