Texto: Marcella Bisetto*Hoje faz 10 meses que deixei meu país. Contados em dias, lá se vão 305 dias da última vez que fechei a porta do meu apartamento em São Paulo, onde morei durante tantos anos. Ainda consigo lembrar de cada detalhe da minha antiga casa, e das muitas situações que ali vivi. À primeira vista, pode até parecer simples fazer as malas e ir para o Aeroporto tentar uma nova vida em outro país, mas somente quem passa pela experiência de deixar sua terra natal para viver em um novo lugar, principalmente se esse novo lugar está a milhares de quilômetros, e quiçá, em outro Continente, consegue entender a magnitude de sentimentos e emoções que a decisão de imigrar comporta. É extremamente difícil despedir-se da sua família, ainda que você vá encontrá-los novamente. Você voltará para vê-los ou eles irão visitá-lo. Isso, claro, em um cenário em que exista essa possibilidade financeira. Talvez para a maior parte dos imigrantes, essa não seja a realidade.No meu caso, além de pais, irmã e amigos leais, tive que deixar minha filha mais velha no Brasil. Aos 17 anos, minha filha cursaria, em 2025, o último ano do Ensino Médio, então, em termos práticos, seria ideal que ela concluísse os estudos no Brasil, e depois viesse morar comigo em Portugal. Porém, com 17 anos, seu filho já sabe o que quer e o que não quer, e fui obrigada a respeitar a decisão da Babi, minha primogênita, em permanecer no Brasil, não só por conta da conclusão dos estudos escolares, mas porque ela, de fato, não queria e não quer mudar de país. Simples assim. E eu tenho que respeitar. Aliás, este foi um ano em que aprendi, “na marra”, a respeitar as escolhas dela. Outra despedida que me arrancou o coração e a alma foi deixar minhas quatro cachorrinhas. Por vários motivos eu não poderia levá-las. Felizmente, consegui alocá-las aos cuidados de duas pessoas extremamente queridas e da minha mais absoluta confiança. Ainda assim, a dor continua tão profunda, que mesmo passados 10 meses, não consigo ver fotos ou vídeos delas, seja do passado, seja do presente. Quando eu estava prestes a partir, indicaram-me o filme “Carlota Joaquina, Princesa do Brasil”, da Carla Camurati. Já entrando na vibe lusitana, resolvi assisti-lo. Chamou-me a atenção, particularmente, a cena em que, ao despedir-se do Brasil e retornar à Portugal, Carlota Joaquina bate com o sapato no convés, como que para limpá-lo, e exclama: “Desta terra eu não quero nem o pó!”.Na época, achei bastante engraçada a cena, e repeti várias vezes a frase... Eu me sentia um pouco assim em relação ao Brasil naquele momento da minha vida.Atualmente moro no Montijo, ao sul de Lisboa. Para quem sempre morou na cidade de São Paulo, uma megalópole pujante, populosa, barulhenta e violenta, estou adorando viver em um lugar menor, mais tranquilo, seguro, onde consigo estar em 5 minutos de carro em qualquer lugar que queira ir: escola, mercado, academia, centro da cidade...É aquele tipo de cidadezinha que tem o coreto na praça principal e a Igreja. Eu fico encantada, e aproveito esse sossego e tranquilidade com que a vida me brinda à esta altura da vida. Apesar da saudade de quem você ama, há um encantamento único em viver na Europa: você respira história. Ainda mais se estamos falando de Portugal, cuja história se entrelaça com a do Brasil. Elegemos Portugal por questões profissionais do meu marido, e porque a adaptação da minha pequena, de 9 anos, seria muito mais fácil sem a barreira da língua.Neste particular, é curioso, e até engraçado constatar, que muitas vezes não entendemos o que os portugueses dizem. Geralmente tenho que pedir que repitam. Já fiz progressos, mas entabular e manter uma conversa sem que eu peça para que repitam alguma palavra ainda é difícil.Clique aqui e siga o canal do DN Brasil no WhatsApp!A vida cultural aqui é bastante rica, e tenho lido muitos livros com o “português de Portugal”, o que ajuda a entender algumas peculiaridades do idioma. Aqui utilizam larga e corriqueiramente a segunda pessoa do singular e sua concordância verbal irretocável: “Estás acordada?”, ou “Tens fome?”.Por aqui também não se usa gerúndio: você nunca está lendo, cozinhando ou fazendo qualquer coisa... você está a ler, a cozinhar ou a fazer algo. Você atende o telemóvel (não é celular), e não diz “alô”, diz “estou”. Também não se diz “meia”, mas “seis”. E não é gol, é golo!Se alguém perguntar se você se magoou, preste atenção, pois magoar, em Portugal, também tem o significado de ferir fisicamente. “Machucar” praticamente não se usa no dia a dia. Para a maioria dos portugueses, parece muito “brasileirismo”.“A Marcella está a ler qual livro?”. Essa é outra construção com a qual me acostumei: ouvir meu nome em uma pergunta direcionada a mim, como se a pessoa estivesse se referindo à uma terceira pessoa.Como sou apaixonada por estudar outros idiomas, estou me deliciando, ou melhor, “estou a me deliciar” com o português de Portugal.E caso você queira saber, seus primeiros amigos aqui serão brasileiros. É inevitável. O sangue chama. Criamos nossos círculos de amizade entre compatriotas. Brasileiro tem essa facilidade de se relacionar, e é vital construir, no início, uma rede de apoio com pessoas da sua cultura, mas aos poucos os laços com os portugueses vão se estreitando, até você também contar com amigos nativos.Embora estejamos falando de um outro tempo, de um outro contexto, de uma outra realidade, e de um outro país destino, olho para esta minha trajetória de imigrante, e constato que acabei por repetir o caminho traçado pelos meus antepassados italianos, que em 1896 chegaram ao Porto de Santos, a bordo do navio Colombo, e graças a quem pude obter minha a cidadania italiana, e viver legalmente na Europa. Por outro lado, eu, em 2025, cheguei de avião à Lisboa, com muitas malas, saudade e esperança. Espero um dia ser lembrada pelos meus netos e bisnetos, que contarão aos seus filhos a minha história como imigrante. Algo que eu nunca havia imaginado, mas a vida nos guia por caminhos que muitas vezes nem sonhamos em transitar, e cá estou, há quilômetros de distância da minha terra natal. E que Carlota Joaquina me perdoe, mas eu não aprecio mais a cena de sua despedida no convés. A despeito da violência, da situação política e econômica, e de tantas mazelas, eu honro minha Pátria, o “meu país tropical, abençoado por Deus, e bonito por natureza”, como eternizou Jorge Bem Jor. E honro também esta terra ensolarada e linda que é Portugal, a qual elegi para recomeçar.*Marcella Bisetto é advogada, artista plástica digital e escritora brasileira radicada em Portugal desde janeiro de 2025. Suas artes já foram expostas no Brasil e na Europa, foi colunista do jornal El Pucará e apresentadora de rádio (Argentina), escreveu diversos artigos sobre maternidade para a Revista Crescer, tendo também colaborado com artigos para a Revista Bica (ambas de Portugal). Publicou seu primeiro livro em 2019, e está a escrever seu segundo livro..O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil..Crônica. Missão: encontrar casa para morar.Crônica. O que as mães dizem quando emigramos?