"Em um lugar que, além de meio de transporte diário para trabalhadores, representa memória afetiva para muitos lisboetas e turistas".
"Em um lugar que, além de meio de transporte diário para trabalhadores, representa memória afetiva para muitos lisboetas e turistas".Foto: Gerardo Santos

Crônica. Tempo de solidariedade

"Como temos construído nossa própria independência e maturidade? Diante da fragilidade da vida, estamos atentos ao presente que temos com nossas pessoas?"
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Texto: Cristina Fontenele*

Uma voz feminina canta em um dos quartos próximos à piscina da pousada: “You’re just good to be true. Can’t take my eyes off you… I love you, baby”. A conhecida melodia invade meus pensamentos que tentam organizar ideias sobre espanto, compaixão e independência enquanto escrevo esta coluna.

A descontração da tal mulher condiz com o ambiente relaxado de miniférias no Alentejo. Clima quente e seco, uma casa grande transformada em hospedagem para famílias e casais, ambientada por árvores, pássaros, cães e corujas. Risos de crianças brincando e a rede armada no jardim.

Entretanto, a paisagem sonora e visual também contrasta com um país em luto. Portugal vive dias de comoção e choque pelo acidente no Elevador da Glória, onde faleceram dezesseis pessoas de oito nacionalidades. Em um lugar que, além de meio de transporte diário para trabalhadores, representa memória afetiva para muitos lisboetas e turistas. Cenário de várias fotografias que guardam aqueles momentos típicos portugueses.

Autoridades, peritos, meios de comunicação buscam juntar as peças de um quebra-cabeça de modo a compreender o contexto, apurar causas e responsabilidades nessa tragédia. É cedo para conclusões, dizem alguns especialistas; é urgente obter respostas, anseia o público; é tarde para remediar, lembram os que alertaram em anos anteriores sobre a necessidade de mais manutenção nos equipamentos. É tempo, sobretudo, de solidariedade e empatia com as vítimas e famílias.

Um desastre que atravessou vidas para além das fronteiras de países e sentimentos. O desespero de quem presenciou a cena, a incredulidade de quem escapou por pouco,  porque desistiu de embarcar naquele exato horário. A apreensão da família distante que entra em contato para saber se nós imigrantes estamos bem. A perplexidade de quem filmava apenas um ponto turístico da cidade.

"Em um lugar que, além de meio de transporte diário para trabalhadores, representa memória afetiva para muitos lisboetas e turistas".
A cronologia do descarrilamento do elevador da Glória, segundo o GPIAAF

Um choro de criança que marca um profundo desamparo.  O tempo parou na última quarta-feira em Portugal. Com assombro, fomos convocados a olhar mais uma vez para a preciosidade da vida.

Do outro lado do Atlântico, o Brasil também enfrenta os seus dilemas. É 7 de setembro, data importante para o país que, há mais de duzentos anos, teve a independência proclamada. Embora ainda encare processos de codependência política, econômica e social.

O mundo tem observado um Brasil cindido que está sendo intimado a defender a soberania e a democracia. Em sobressalto, somos lembrados de que não podemos considerar as conquistas como algo garantido. São eventos marcantes em ambas as nações, por motivos diferentes, mas que nos levam a estados de reflexão. 

Como temos construído nossa própria independência e maturidade? Diante da fragilidade da vida, estamos atentos ao presente que temos com nossas pessoas? Deixo aqui minha solidariedade às vítimas e familiares afetados pelo acidente. E faço coro com aqueles que almejam tempos de mais paz e segurança. 

*Cristina Fontenele é escritora brasileira, com especialização em Escrita e Criação. Autora de "Um Lugar para Si - reflexões sobre lugar, memória e pertencimento”, além de jornalista e publicitária. Escreve crônicas há quinze anos e, como típica cearense, ama uma rede e cuscuz com café bem quentinho.

O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil.
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