Coletivo Gira: brasileiras formam a roda de samba que se tornou referência em Lisboa
Sambistas do grupo fazem sucesso nas noites lisboetas. Ao DN Brasil, comentam sobre como é para uma imigrante trabalhar com música em Portugal.
Texto: Nuno Tibiriçá
As noites de sexta-feira na Praça David Leandro da Silva, em Marvila, não são as mesmas desde o início deste ano, quando as sambistas do Coletivo Gira fixaram a sede da roda de samba no Clube Oriental de Lisboa. Em atividade desde 2020, o grupo formado por sete artistas brasileiras que até o ano passado animava as noites da Rua de São Pedro, em Alfama, encontrou no clube a "Casa da Gira".
"O Samba Alfama foi o lugar que abriu as portas para nós quando a gente precisava mesmo de um lugar para consolidar o nosso nome, tocar semanalmente. Eu tava incomodando muito as gurias, falando dessa necessidade, antes a gente tocava quinzenalmente em alguns lugares e aí surgiu a possibilidade de uma agenda semanal fixa em Alfama", conta a gaúcha Kali, que forma o grupo ao lado de Bibi, Brunaum, Emile, Lika, Méli e Tida, artistas vindas das mais diferentes regiões do Brasil.
As sambistas já tocavam juntas há alguns anos, mas foi no espaço de Alfama que o Coletivo Gira começou a ficar na "boca do povo". O sucesso foi tanto que o lugar ficou pequeno para as perfomances das brasileiras, que começaram a atrair cada vez mais gente nas noites de sexta-feira. O grande contingente de pessoas e alguns problemas com a vizinhança no bairro histórico lisboeta foram alguns dos motivos para a mudança da roda de samba para o Oriental, consolidada em janeiro deste ano.
"Começou a virar um ambiente que, para nós, era muito legal. Gente de todos os tipos se juntando, galera queer e claro, a maior parte imigrante. E começou a incomodar o pessoal ali perto também, mais conservador. E aí a gente passou por uns momentos bem complicados, de assédio, de violência, xenofobia. Agressões verbais e quase físicas também, com pessoal que ía ali provocar", lamenta Kali.
Com a falta de estrutura e episódios de violência, o Coletivo saiu de Alfama e iniciou a procura por um novo lugar. Ao entrarem pela primeira vez no Oriental, histórico clube de Lisboa, fundado em 1946, a reação foi de admiração, mas também preocupação: "Como a gente vai encher esse lugar? É muito grande", lembra Tida, outra das idealizadoras do Gira.
A Casa da Gira e o futuro do Coletivo
Mesmo com o risco, as artistas escolheram o clube como a Casa da Gira, decisão que se mostrou a mais acertada possível. Todas as sextas-feiras, das 20h à meia-noite, o movimento é grande no espaço de Marvila e a cultura de roda de samba, ainda recente para o público português, tem ganhado seu espaço.
"Mas a gente sente que, além do público brasileiro, tem atraído gente daqui também e vários gringos de diferentes partes da Europa também", diz Kali, antes de Emile completar: "Acho que para os portugueses pode ser um pouco estranho isso de uma mesma banda tocar todas as semanas, é algo muito presente na nossa cultura e muito característico da roda de samba. Mas sentimos que tem tido presença", conta.
Por falar em diferentes partes da Europa, o sucesso do Coletivo Gira em Lisboa já começa a fazer as artistas cruzarem fronteiras no Velho Continente. Recentemente, Bibi, Tida, Lica, Brunaum, Emily, Meli e Kali, estiveram na Suíça para dois espetáculos. Após anos em Portugal trabalhando em diversas áreas de serviços, as artistas agora conseguem viver só da música no país e querem fincar os pés como referência de roda de samba na Europa.
"Eu trabalhei por cinco anos como empregada doméstica aqui em Portugal, trabalhando 12 horas por dia. Graças a Deus hoje a gente consegue viver só da música e é algo que ainda estou me adaptando: gerir meu dinheiro, tempo, trabalho. Mas só de ter um tempo para estudar, para viver isso de fato, já é incrível. Só gratidão", fala Emile.
Desde que se mudaram para o Oriental, a relação tem sido de harmonia, tanto, nos shows, quanto com a vizinhança. O fato do coletivo levantar as próprias bandeiras de luta, também faz com que as sextas-feiras na Casa da Gira atraiam cada vez menos o que Kali define como "um público difícil".
"A gente não consegue separar as duas coisas, o nosso posicionamento, quem nós somos. Nossas vivências estão completamente atreladas ao projeto e, naquela época das eleições de 2022, por exemplo, a gente viu o clima muito polarizado, rolou briga em roda, clima tenso. E a gente resolveu se posicionar, até para demarcar território, mostrar que na nossa roda não tinha espaço para ódio", lembra Kali, no que Emile relembra com ironia "disseram que samba e política não se misturavam".
Após recentemente tocarem fora de Portugal pela primeira vez enquanto coletivo - algo previsto para acontecer mais vezes em 2025 - as artistas do Gira seguem com outros futuros projetos enquanto prioridade. Recentemente, deram entrada no processo para o Coletivo Gira se tornar legalmente uma associação. Gravar um projeto autoral também é uma das próximas metas para um futuro próximo.
Coletivo formado por mulheres imigrantes que conseguiram se firmar no cenário cultural de Portugal, o Gira, com o sucesso e forma de gestão escolhido, fez com que, para elas, viver da cultura por aqui seja um sonho possível.
"Os cachês em Portugal são extremamente baixos. Portanto chegar num ponto onde a gente pode oferecer para todas as pessoas que trabalham com a gente salários dignos, foi essencial. Para o nosso coletivo ser mulher, imigrante e artista, é sonho. A gente sabe que a situação cultural de Portugal é muito difícil. Então muito feliz que a gente tenha construído isso no Gira", afirma Tida.
As apresentações do Coletivo Gira em Marvila são divulgadas semanalmente na página de Instagram do grupo. As informações acerca das atrações e ingressos para a próxima roda podem ser encontradas neste link.
nuno.tibirica@dn.pt