“Brasileiros fazem diferença na cultura e na política”
Ana Paula Costa, vice-presidente da Casa do Brasil em Lisboa, traça o perfil do imigrante, denuncia a xenofobia – e destaca contribuição que os brasileiros trazem a Portugal
Entrevista: João Gabriel de Lima
Poucos conhecem tão bem as alegrias e atribulações dos brasileiros que vivem em Portugal quanto Ana Paula Costa. Como vice-presidente da Casa do Brasil em Lisboa – uma associação sem fins lucrativos voltada às questões da imigração – lida todos os dias com os problemas concretos da comunidade brasileira. Como investigadora na área de políticas públicas, junta estatísticas e conhecimento a essa vivência prática.
Ana Paula Costa chegou a Portugal em 2016 para projetos acadêmicos. Hoje vive na Alfama, um dos bairros do fado em Lisboa, frequenta rodas de samba e considera que brasileiros e portugueses interagem criativamente nas áreas da cultura e da política. “Minha família vive no Brasil, minhas amizades estão em Portugal. Sinto saudades do Brasil, mas quando estou lá penso em voltar a Portugal, que é a minha casa”, diz Ana Paula Costa em entrevista ao DN Brasil. Seguem os principais trechos.
Qual o perfil das pessoas que buscam a Casa do Brasil?
O perfil é diverso. O grosso continua sendo o trabalhador, mas temos também um número bastante representativo de estudantes, pessoas que vêm empreender em Portugal, e profissionais qualificados que vêm trabalhar em empresas específicas, já contratados desde o Brasil.
Nestes cinco anos trabalhando na Casa do Brasil, você observou mudanças no perfil do brasileiro que vive em Portugal?
A principal mudança, que vem ocorrendo de três anos para cá, é a vinda de um público cada vez mais qualificado a nível de formação universitária e profissional. É uma das características da quarta vaga de imigração que vivemos hoje.
Como se definem essas vagas de imigração?
A primeira vaga, nos anos 1990, era de pessoas que tinham dupla nacionalidade, brasileira e portuguesa. Eram mais homens nesse primeiro momento, com um perfil mais qualificado. Depois, nos anos 2000, tivemos uma segunda vaga, com um perfil mais laboral, um pouco em consonância com esse novo Portugal a receber fundos europeus. Esses brasileiros vieram trabalhar nos setores da construção civil, obras públicas, turismo. Depois tivermos uma terceira vaga, por volta de 2014 e 2015, que misturava os dois perfis: o mais qualificado, com dupla nacionalidade, juntamente com o trabalhador imigrante. Começamos aqui a já ter os estudantes, um pouco fruto de políticas existentes no Brasil, como o Ciência Sem Fronteiras.
E a quarta vaga, que vivemos agora?
Ela começou em 2019, com uma interrupção por causa da pandemia, e tem um perfil bem mais diversificado. Os estudantes continuaram representativos, os trabalhadores seguem sendo o grosso dessa imigração, mas tem também o investidor, o aposentado, o profissional qualificado, o empreendedor. E cresceu a porcentagem de mulheres. Hoje a imigração brasileira é composta mais por mulheres que homens.
As brasileiras estão distribuídas em toda a pirâmide social?
Sim, em todos os setores sociais e econômicos e em todas as etnias. Existe o perfil de mulheres que vêm para acompanhar suas famílias, mulheres que vêm para as universidades, para o mercado de trabalho. Alguns estudos mostram mulheres brasileiras ocupando muito a área da estética, da beleza, um pouco condicionadas pela visão que se tem aqui do Brasil, e também para o setor dos cuidados.
De acordo com a Embaixada do Brasil há também um novo perfil de imigrante que vem trabalhar na área de tecnologia. Você também tem visto isso?
Sim. Sobretudo porque essa é uma área em que toda a Europa, incluindo Portugal, é muito deficiente de mão de obra. Faltam profissionais especializados no setor digital de forma geral, de energia eólica a Tecnologia da Informação. Há muitos brasileiros que vêm para cá e se integram nesse setor, em geral recrutados ainda no Brasil. A isso se soma o dado de que 30% dos portugueses entre os 15 e os 39 anos deixam o país, segundo estatística do Observatório da Emigração. Quem fez estudo foi o Rui Pena Pires, que há muito tempo se debruça sobre o tema da emigração. Portugal tem uma necessidade estrutural, não só de mão de obra, mas também de rejuvenescimento de sua população. É um dos países mais envelhecidos da Europa, e o fato de a taxa de emigração de jovens ser de 30% desestrutura não apenas o mercado de trabalho, mas também a segurança social. Já o perfil dos imigrantes brasileiros é de gente mais jovem, em comparação com a população portuguesa, e em idade economicamente ativa. Esses jovens acabam contribuindo para a segurança social e ajudam a equilibrar o déficit causado pelos portugueses que saem do país.
No Brasil hoje se fala muito de xenofobia. Qual é o tamanho desse problema?
Aquela xenofobia verbal do “volta para a sua terra” sempre existiu. Chamar brasileira de prostituta também sempre existiu. Isso evoluiu para ofensas em público e alguns episódios mesmo de violência física, noticiados nos jornais. Eu acho que, a partir da pandemia, o discurso contra os imigrantes começou a ficar mais agressivo. Num primeiro momento, o coronavírus era chamado de “vírus da China”, e depois disso foi disseminada a ideia de que os imigrantes traziam doenças. Isso foi numa crescente, começou a alimentar movimentos anti-imigração da nossa sociedade. E depois, agora nas eleições, houve um partido de direita radical que capitalizou esse sentimento.
O que vocês aconselham para quem procura a Casa do Brasil relatando um caso de xenofobia?
Muita gente nos procura. Nós sempre aconselhamos a denunciar e ajudamos a pessoa a fazer a denúncia na polícia – e, se for o caso, a abrir um processo civil ou penal.
São relatados também casos de xenofobia nas escolas. Como vê esse fenômeno?
Na nossa experiência, de casos que nos chegam na Casa do Brasil, essa xenofobia se dá na questão linguística, principalmente com adolescentes que tiveram sua alfabetização no Brasil. Sempre tem essa pergunta, “quando é que você vai falar português direito?” A meu ver, é bastante necessário falar da xenofobia que acontece nas escolas porque ali é onde se transmite e se estrutura o que é o país e o que é Portugal.
Quais são as principais dificuldades que os brasileiros têm? As pessoas que vêm aqui à Casa do Brasil pedem que tipo de orientação?
Há dois assuntos que disputam o número um. O primeiro é a dificuldade para conseguir autorização de residência, renovar os seus cartões, conseguir se regularizar. O outro tema é a habitação. Se você não tem onde morar, onde dormir, como você consegue pensar em outras coisas?
Pode-se dizer que esse tema foi ficando mais forte à medida que as rendas, ou os aluguéis como se diz no Brasil, começaram a subir e desencadearam uma crise em Portugal?
Sim, o que acontece hoje não tem comparação com nenhum período do passado. Eu vivo em Portugal há oito anos e as coisas se deterioraram em muito pouco tempo. As pessoas não conseguem pagar suas casas, não conseguem cumprir os requisitos que cada vez ficam piores para arrendar imóveis – hoje há quem peça doze cauções.
Doze aluguéis adiantados?
Já tivemos casos de quem pedisse dezesseis, aqui na Casa do Brasil. A legislação da habitação é muito dúbia. Há também, novamente, a questão do preconceito e da xenofobia. Há muitos proprietários e imobiliárias que não querem arrendar para brasileiros apenas pelo fato de serem brasileiros.
Depois desses dois problemas “número um”, um terceiro talvez fosse a procura de trabalho, ou não?
Trabalho é sempre uma questão, mas isso também está muito articulado com a dificuldade para se conseguir o reconhecimento dos diplomas e dos graus. Não é só para quem quer estudar, fazer carreira acadêmica, mas para quem quer trabalhar na sua área também. A nossa comunidade, como eu disse, é cada vez mais qualificada, mas muitos têm imensa dificuldade para conseguir atuar no mercado de trabalho em sua área de formação.
O problema, nesse caso, é a burocracia?
Há a questão da burocracia. Há o problema do preço, é bastante caro reconhecer um diploma. Pode ainda ser demorado, a depender da área, e não é certo que você vai ter esse reconhecimento, vai depender da banca que irá avaliar se o seu curso, sua faculdade, é reconhecida em Portugal.
É algo que se assemelha a uma reserva de mercado de trabalho?
Há o imaginário de que o imigrante deve atuar num mercado de trabalho específico, o de serviços, e não no mercado de trabalho qualificado. É um problema que a gente precisa combater, esse estereótipo de que o imigrante só pode ocupar determinados postos.
Nesses cinco anos que você está aqui, o que você viu de positivo na evolução dos imigrantes brasileiros?
O mais positivo da imigração brasileira é o que nossa comunidade tem feito, aqui em Portugal, no âmbito da cultura. A cultura portuguesa e a cultura brasileira têm se relacionado numa perspectiva de crescimento mútuo. Olha quantos artistas brasileiros temos em Portugal, olha quantas rodas de samba, é algo que não havia cinco anos atrás. Há uma troca bastante criativa entre artistas brasileiros e portugueses, pessoas que estão interagindo e se articulando e fazem a noite de Lisboa e do Porto, para ficar nas principais cidades. E há a integração entre artistas brasileiros e portugueses com muitos angolanos, cabo-verdianos, toda uma produção de raiz e matriz africana aqui em Portugal.
Há alguma outra contribuição que gostaria de destacar?
Há também a contribuição política, de questionar o lugar do imigrante, de questionar os estereótipos, de fazer proposições para que se crie condições de igualdade. Os brasileiros têm se envolvido cada vez mais com os partidos de todo o espectro ideológico, têm se envolvido nas associações, nos movimentos sociais, têm se aliado com movimentos sociais que já existiam há muitos anos em Portugal, como o movimento negro, têm se aliado a lutas antigas reivindicando políticas de igualdade, reivindicando mudanças legislativas sobre imigração e combate ao racismo. Esta é, a meu ver, uma contribuição muito importante.