Brasileiros criam a Língua Mátria, nova editora de livros dedicada a autores lusófonos
Iniciativa de Bianca Vivarelli e Jaime Mendes, radicados em Lisboa há quatro anos, destaca a pluralidade cultural e linguística de autores de língua portuguesa, com foco em temas sociais.
Texto: Nuno Tibiriçá
A relação de Bianca Vivarelli e Jaime Mendes com a literatura é de longa data. Bianca, musicista e psicanalista, cresceu cercada de livros e histórias, uma influência de sua mãe professora. Jaime, por sua vez, formou-se em História e encontrou nos livros o caminho para sua carreira, transformando uma paixão em um negócio de vida.
“Eu trabalhava como funcionário público, só que naquela época, com a inflação alta, cortaram meu meu salário e minha carga de trabalho foi de oito para seis horas. Precisava fazer mais algum dinheiro, já tinha uma filha pequena na época, então comecei a alugar livros que eu comprava. Cheguei a ter 50 leitores que liam três livros por mês”, começa por contar Jaime em entrevista ao DN Brasil, com um sotaque carioca que disfarça de onde veio.
Jaime, na verdade, é português. Ele nasceu em uma pequena aldeia chamada Fonte Coberta e, aos nove anos, foi junto com sua família para o Rio de Janeiro, onde os pais encontraram um refúgio para escapar da ditadura salazarista (1926 - 1974). Historiador por formação, Jaime anos depois encontrou nos livros sua paixão e o futuro para sua carreira.
Após o sucesso com o aluguel de livros no início dos anos 90, Jaime se demitiu do emprego na função pública e abriu sua primeira editora, a Contra Capa, em Copacabana: “Acho que fomos a primeira editora a fazer entrega a domicílio. E eu que ia entregar, recebia gorjeta. Só que depois as pessoas começaram a perceber que a voz que atendia o telefone era a mesma que tocava o interfone para entregar o livro, e aí pararam de dar gorjeta, ficavam constrangidos”, relembra.
Anos depois, Jaime se encontraria com Bianca, outra devoradora de livros, que se tornaria sua companheira e com quem teve dois filhos. “Desde pequenininha, os livros sempre estiveram presentes na minha vida. Cresci cercada de histórias, e isso moldou meu olhar para o mundo. Tenho uma ligação profunda com a palavra. A leitura é algo que sempre me acompanhou, e acredito que a palavra tem o poder de transformar, abrir horizontes e conectar pessoas”, conta a carioca.
Após quase 50 anos vivendo no Brasil, Jaime veio a Portugal a turismo e percebeu que, assim como seu passado, seu futuro passaria por aqui. Bianca, assim como os dois filhos do casal, acompanhou o marido nesse reencontro.
"Só voltei a Portugal em 2016, em férias com a família; antes disso, nunca tinha voltado. Fizemos esse passeio, conheci a aldeia onde nasci e aí me encantei com Portugal e começamos a pensar em uma mudança. Nessa época, o Brasil já estava complicado, foi a época do golpe, e a gente estava vendo que seria difícil ficar idoso por lá”, relembra Jaime, fazendo referência ao processo de impeachment de Dilma Rousseff e à Reforma da Previdência que era discutida pelo seu sucessor, Michel Temer.
Saudade Importadora e o surgimento da Língua Mátria
Quatro anos depois, o casal finalmente colocou a mudança em prática e embarcou rumo a Lisboa. Pouco mais de um mês após chegarem à capital portuguesa, a pandemia de COVID-19 impôs o isolamento e fez com que mal conhecessem a nova cidade. Jaime, em casa, resolveu improvisar.
“Quando vim para Portugal, minha missão era recuperar a Nova Guanabara, distribuidora de livros do Grupo GEM que já atuava aqui desde 1980. O plano era tentar reverter os prejuízos e fortalecer a presença desses livros no mercado português. Mas aí veio a pandemia, e o Grupo GEM decidiu fechar a Nova Guanabara, que já estava em dificuldades, e isso abriu caminho para que eu criasse a Saudade”, lembra Jaime.
Distribuidora, a Saudade nasceu vendendo livros brasileiros online para livrarias de Portugal e para outros países lusófonos, como Angola e Moçambique. A proposta de Jaime era criar uma ponte entre a literatura brasileira e o público lusófono. O negócio deu certo. “Hoje em dia já passaram pelo nosso estoque 13 mil títulos, e eu tenho em estoque hoje 10 mil títulos, sempre com a ideia de diversidade”, explica Jaime.
Essa relação intensa com a literatura deu origem à Língua Mátria, editora que será lançada em breve focada em promover a diversidade da língua portuguesa. A ideia é publicar autores dos países lusófonos, mantendo a originalidade de suas vozes e sotaques. “Eu acredito na diversidade; é essa riqueza de títulos que nos move e que queremos trazer para Portugal”, reflete Jaime.
Bianca, que não trabalha diretamente na Saudade e na editora que está prestes a ser lançada, assume uma função estratégica, participando da Feira do Livro e ajudando na seleção de títulos. “A minha participação nessa parceria é mais essa da sensibilidade, da escuta. A própria formação em psicanálise me traz isso, ajudando na escolha de títulos, temas e na forma de apresentar esses livros. Eu acredito que o olhar atento à palavra, ao que ela significa e pode transformar, faz parte do que eu trago para a Saudade e para a Língua Mátria”, conta Bianca.
O livro de estreia da Língua Mátria já está confirmado: será "Filha Primitiva", da escritora brasileira Vanessa Passos. Nas obras pensadas por Jaime e Bianca, livros que abordem temas como a xenofobia e o racismo são algumas das prioridades.
"O racismo é algo que me incomoda profundamente. Hoje, vivemos em uma sociedade que ainda sofre as consequências de um período de escravidão mercantil, que deixou marcas não apenas na população negra, mas também na branca. Determinar o lugar de alguém na sociedade com base na cor da pele ou origem étnica é um absurdo que precisamos combater, e acredito que os livros têm um papel fundamental nesse processo", pontua o luso-brasileiro.
Jaime também ressalta que a Língua Mátria irá manter a integridade das obras, sem adaptar as variações linguísticas para o português europeu, preservando a riqueza da língua.
"A diversidade é um ponto central para a Língua Mátria, e cada sotaque, cada forma de expressão dentro da língua portuguesa deve ser valorizada. Não faz sentido padronizar o português de autores brasileiros, moçambicanos ou guineenses para o padrão europeu. Isso seria perder a essência e a identidade de cada autor e região, como se estivéssemos tirando parte da cultura e da história que essas palavras carregam", afirma.
Além do lançamento da nova editora, Jaime e Bianca também estão prestes a abrir um espaço físico da Saudade em Lisboa, uma espécie de showroom para os mais de 10 mil títulos do catálogo. A loja permitirá que os livreiros explorem o acervo pessoalmente, facilitando o acesso à diversidade literária que a distribuidora promove.
Para o casal, os livros são mais do que produtos comerciais. São ferramentas de transformação e entendimento.
“Os livros são instrumentos fantásticos para melhorar um pouquinho esse mundo. Enquanto você não conhece a cultura do outro, aquilo é estranho, tudo que é estranho causa receio. É por meio da palavra que você combate esse medo, criando pontes de compreensão”, finaliza Jaime.
nuno.tibirica@dn.pt