Brasileiros crescem participação no empreendedorismo e área digital em Portugal
Há um fluxo de desenvolvedores e programadores brasileiros que emigraram para o país em busca de trabalho na área em grandes empresas.
Texto: João Gabriel de Lima
O filme “Um dia sem mexicanos” retrata, em tom de comédia, o que seria da Califórnia se todos os imigrantes do país de Pancho Villa desaparecessem por 24 horas. E o que aconteceria em Portugal se, de uma hora para outra, sumissem os brasileiros? Em crônica publicada no Diário de Notícias, a jornalista Amanda Lima fez um exercício ainda mais radical: imaginou Portugal sem os imigrantes não-europeus. Em seu texto, Amanda Lima fala de restaurantes sem comida, frutarias sem frutas - em geral são os imigrantes que as colhem - e táxis disputados a tapa, na ausência de motoristas que atendessem nos aplicativos.
O exercício ficcional dá uma ideia da presença dos imigrantes no mercado de trabalho português, de forte presença nos setores de bares, restaurantes, hotéis, construção civil, empregadas de limpeza e entre motoristas de aplicativo. Quando se trata dos brasileiros, vai-se muito além disso. Estão em todos os estratos sociais, dos batalhadores blue collar aos empreendedores white collar. O relatório anual do Observatório das Migrações, edição de 2022, aponta que o Brasil aporta o terceiro maior contingente de trabalhadores qualificados ao mercado de trabalho português ,atrás apenas, em percentagem, dos espanhóis e dos franceses. Se Portugal quer se transformar na Califórnia da Europa, precisa muito do suor, do talento e da criatividade de seus “mexicanos”, que aqui atendem por “brasileiros”.
A menção à Califórnia não é fortuita. Entre os economistas portugueses é recorrente a máxima de que o modelo ideal para o país é um misto de Flórida com Califórnia. O objetivo “Flórida” já foi alcançado. Com clima privilegiado e esplêndida gastronomia, Portugal já é um destino turístico vibrante e pólo de atração dos aposentados do Velho Continente - já escuta-se mais inglês do que português nas ruas e praias da região do Algarve.
Falta agora realizar o projeto Califórnia, ou seja, tornar-se um celeiro de startups e economia digital. Para isso, o país investiu milhões para sediar o Web Summit, o principal festival digital da Europa. De acordo com estudo coordenado pelo professor João Cerejeira, da Universidade do Minho, já se sente o impacto do Web Summit no mercado de trabalho. O setor de tecnologia, ao lado do de medicina, é um dos dois onde há pleno emprego em Portugal. Profissionais da área começam a chegar do mundo inteiro, juntando-se aos portugueses que se formam nas boas escolas de engenharia do país.
Esses profissionais se juntam em lugares como o Porto Digital, em Aveiro, ou o Hub do Beato, em Lisboa - apenas uma das “garagens” onde começam a surgir empresas da nova economia, muitas delas criadas ou geridas por brasileiros. “Na Web Summit, percebi que o ecossistema de startups em Portugal é uma coisa incrível, é uma referência no mundo, muito maior que o do Brasil”, diz Jorge Vianna, presidente da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos, a APEX.
Startups de garagem
A sede da Snack, uma dessas empresas, fica literalmente num porão, no GDI Hub, um cowork no bairro da Cruz Quebrada. Ali se ouve, ao longe, os acordes de uma das lojas de pianos mais tradicionais de Lisboa. Um porão charmoso onde, seguindo uma luz de neon verde, chega-se ao paulistano Nelson Botega, um dos donos da Snack. Corria o ano de 2013, Nelson Botega trabalhava numa agência de publicidade e notou, junto com um colega, que a maior parte de seus clientes usava as redes sociais apenas para colocar no ar comerciais curtos. Analisando as métricas, Botega notou que isso não fidelizava a audiência em torno das marcas. Era preciso algo mais: conteúdo.
Foi assim que surgiu a Snack, responsável por alguns dos perfis empresariais mais bem-sucedidos entre as marcas brasileiras - o mais famoso é o canal de Youtube do “Coisas do Brasil”, do Guaraná Antártica. De olho no mercado europeu, a Snack se estabeleceu em Portugal, conseguiu logo um cliente de peso: a rede de supermercados Continente, uma das maiores do país e iniciou um projeto de expansão internacional. “Portugal é o nosso laboratório”, diz Nelson Botega ao DN Brasil.
Para quem tem curso superior e emigra para Portugal, muitas vezes é mais fácil empreender que enfrentar a burocracia de validar um diploma, para depois disputar espaço no fechadíssimo mercado de trabalho português. Em Portugal, abrir uma empresa é um processo simples que pode ser resolvido online. A jornada, no entanto, tem armadilhas que devem ser evitadas. “Primeiro, é preciso conhecer bem a área em que se quer empreender, para saber se o mercado não está congestionado”, explica o consultor Eduardo Migliorelli. O imgirante é o dono da Atlantic Hub, empresa que auxilia brasileiros que querem iniciar algum negócio em Portugal. Ele começou sua atividade com uma espécie de tour empresarial para brasileiros. No primeiro ano, 2016, tinha 16 clientes. No mais recente, em 2023, encheu um ônibus com 150 pessoas.
Foi Eduardo Migliorelli quem fez a pesquisa prévia para que a Snack descobrisse que seu negócio, marketing de conteúdo, era ainda algo novo em Portugal. Os passos seguintes constituem um playbook que se consagrou entre os empreendedores brasileiros em Portugal. Primeiro, Nelson Botega apostou em sócios portugueses, conhecedores da cultura local. “Temos que nos adaptar aos procedimentos do país que nos acolhe”, diz. “Os projetos aqui precisam ser muito mais embasados que no Brasil para entusiasmar os investidores”, complementa. Aproveitou a experiência adquirida em Portugal para expandir-se em continente europeu e acaba de abrir uma nova sucursal em Milão, na Itália.
Por fim, usou a expertise local para alavancar o negócio. “A inteligência artificial que usaremos em todas as nossas operações está sendo criada aqui”,ressalta Botega. Segundo o empresário, Portugal, em sua aspiração de se tornar a “Califórnia” europeia, concentra um número enorme de desenvolvedores de vários países. Há nômades digitais alemães, suecos e noruegueses, que vieram a Portugal atraídos pelo clima, estilo de vida e preços mais amigáveis em relação a seus países de origem. A ex-metrópole colonial abriga também imensas comunidades indiana e chinesa - uma pequena Ásia cheia de talentos na área digital. Juntam-se a eles os imigrantes brasileiros, cada vez mais presentes na cena tecnológica, e os portugueses da geração mais bem formada de todos os tempos no país. “A concorrência entre os desenvolvedores faz com que todos se aperfeiçoem, e isso torna Portugal um dos melhores países para desenvolver projetos tecnológicos”, afirma o empreendedor.
Há também um fluxo de desenvolvedores e programadores brasileiros que emigraram para o país em busca de trabalho na área em grandes empresas. A Airbus francesa, por exemplo, uma das duas maiores fabricantes mundiais de aviões de grande porte, recentemente transferiu todo um departamento na área de tecnologia e logística para Lisboa. A prática, cada vez mais comum entre países da União Europeia (UE), é conhecida como nearshore, e consiste em migrar partes de uma empresa para países cuja sede está a apenas poucas horas de avião. Um executivo chamado para uma reunião de emergência pode ir e voltar no mesmo dia, por exemplo.
Futebol: uma paixão
O movimento de criação de novas empresas na área de tecnologia, e migração de algumas já existentes - caso da Snack - é a novidade do momento no mundo dos brasileiros que buscam “fazer a Europa” a partir de Portugal. Eles juntam-se aos batalhadores que vêm em busca de trabalho, às vezes precário e não tão bem remunerado, em setores onde Portugal absorve mão de obra estrangeira, casos do turismo e da construção civil. Há inúmeros brasileiros a trabalhar em hotéis e restaurantes, e inclusive quem empreenda na área - caso da baiana Carolina Brito, criadora da marca Acarajé da Carol. A vida de quem trabalha na construção civil às vezes pode ser difícil, mas as oportunidades são inúmeras e há compensações.
Brasileiros e portugueses compartilham a paixão pelo futebol. Até hoje há um enorme fluxo de jogadores brasileiros para Portugal, e muitos acabam por se tornar ídolos em grandes equipes como Porto, Benfica e Sporting. A novidade agora são os brasileiros que se mudam em busca de algo que, na área do futebol, Portugal faz melhor que o Brasil: a formação de técnicos. O sucesso de treinadores como Jorge de Jesus no Flamengo e Abel Ferreira no Palmeiras estimulou alguns brasileiros a atravessar o oceano para decifrar a cabala das táticas. Para eles, como para todos os profissionais que chegam ao país, é útil conhecer as diversas modalidades de contrato de trabalho.
As oportunidades de trabalho que surgem em Portugal partem de um fato: 30% dos jovens entre 15 e 39 anos deixam o país em busca de emprego e experiências, de acordo com levantamento recente do Observatório da Emigração. Parte disso se deve aos salários portugueses, que estão abaixo da média europeia e não chegam para pagar os preços crescentes dos alugueis em cidades como Porto e Lisboa. Parte se deve aos próprios incentivos dentro da União Europeia. Com a possibilidade de circular livremente, é inevitável que profissionais em início de carreira busquem experiências em culturas diferentes, venham eles dos países com mais ou menos dinheiro na UE.
Como disse em entrevista recente Daniel Traça, ex-reitor da Universidade Nova de Lisboa, “a Europa precisa de jovens”. As oportunidades de trabalhar e empreender, em diferentes profissões e áreas do conhecimento, crescem na mesma proporção da idade média dos cidadãos europeus. Portugal tem a segunda média de idade mais alta da UE, atrás apenas da Itália. Parte dos europeus que se aposentam já descobriu a sua Flórida, que chama-se Portugal. E cada vez mais jovens do mundo todo aportam seu talento, força de trabalho e criatividade à ensolarada Califórnia europeia.