Brasileiro em Portugal estuda relação entre câmeras de videovigilância e racismo
Melo vai além da polêmica sobre privacidade: quer mostrar que tal tecnologia pode ser colocada a serviço de um crime infame: o racismo.
Texto: Gisele Rech
Vivemos um “Big Brother” na vida cotidiana? No Bairro Alto, epicentro da vida boêmia de Lisboa, o sistema de câmeras de videovigilância completa 10 anos em 2024 e causa debate. Se por um lado alguns o percebem como inibidor da criminalidade, outros o veem como invasão de privacidade, um cenário semelhante ao descrito na distopia “1984”, de George Orwell.
Paulo Victor Purificação Melo, brasileiro que faz investigação de ponta na academia portuguesa, decidiu utilizar o tema como ponto de partida do pós-doutorado. Melo vai além da polêmica sobre privacidade: quer mostrar que tal tecnologia pode ser colocada a serviço de um crime infame: o racismo. “No Brasil, a prática racista com uso de câmaras de reconhecimento facial utilizado pela Segurança Pública tem sido vista repetidas vezes, com casos de prisões de pessoas negras que são inocentes e foram identificadas erroneamente. Houve casos, por exemplo, no Carnaval do Rio de Janeiro”, diz Paulo Victor ao DN Brasil.
Em Portugal o reconhecimento facial ainda não existe. A União Europeia (UE), no entanto, aprovou recentemente uma lei de regulação do uso de Inteligência Artificial (AI) que permite o uso de câmaras com reconhecimento facial em espaços públicos. “É possível que essas câmaras de passem a ser utilizadas em pouco tempo e isso pode ser um risco”, afirma Paulo Victor. O investigador tem uma trajetória acadêmica robusta. Depois de terminar o doutoramento em Comunicação na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em Salvador, decidiu estreitar os laços com a unidade LabCom, da Universidade da Beira interior (UBI), uma das maiores referências do campo de estudo da comunicação em Portugal.
De acordo com Paulo Victor, o diálogo começou ainda no Brasil. “Decidi me mudar para Covilhã mesmo sem bolsa de estudos na universidade. Foi uma questão de investir em troca de experiência e conhecimento”, recorda. Pagou do bolso a taxa administrativa do pós-doutoramento, que em Portugal é menor que os valores de mestrado e doutoramento.
A chegada em Portugal foi no segundo semestre de 2021, quando instalou-se na Covilhã e iniciou a investigação. Na altura, o brasileiro integrava um projeto da Fundação Oswaldo Cruz, a Fiocruz, uma das instituições mais respeitadas no Brasil quando o assunto envolve pesquisas na área da saúde. Um ano depois, recebeu uma bolsa para realizar uma investigação no Instituto de Comunicação da Universidade Nova de Lisboa (ICNOVA), desta feita com possibilidade de dedicação integral.
O estudo está concentrado no Bairro Alto, que em 2024 completa 10 anos da instalação das câmaras de vigilância. “O que nos interessa é entender quais são as motivações que sustentam instalação e ampliações de videovigilâncias. Por que esses sistemas têm se alargado tanto? Quais as implicações que os sistemas trazem na questão da privacidade das pessoas? Há implicações? Quais são?”, questiona.
Carreira
Na atuação como investigador, Paulo Victor faz parte da coordenação da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação (Sopcom) e da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom), onde é vice-coordenador do grupo de pesquisa Comunicação Antirracista e Pensamento Afro-Diaspórico.
O repertório acadêmico dialoga com o envolvimento dele em movimentos sociais, como a luta pela habitação. “É um problema seríssimo de Portugal. A pessoa que tem dificuldade de ter uma casa, vai ter dificuldade de se relacionar com o espaço urbano de uma maneira geral, sem acesso à cultura e ao lazer, entre outras questões”, afirma.
Para ele, a relação entre moradia e racismo é flagrante. “Quando olhamos para as pessoas que historicamente têm dificuldades no acesso à casa em Portugal, vemos pessoas negras, de países africanos, do Brasil, de países do Oriente Médio - não imigrantes da Europa central ou do Norte”, diz. Além do trabalho como investigador e da militância junto a movimentos sociais, Paulo Victor passou a dar aulas na Faculdade de Design, Tecnologia e Comunicação da Universidade Europeia (IADE), onde leciona disciplinas que dialogam com o exercício do jornalismo, sua formação original.
No fado e no samba
Apesar de Paulo Victor nunca ter sofrido diretamente com racismo, o investigador já passou por uma situação de preconceito linguístico. Aconteceu em uma loja de serviços em comunicação, quando a empresa não cumpriu uma das cláusulas do contrato. “Em um determinado momento, uma funcionária disse: é uma questão de português, da língua portuguesa. Eu respondi que conheço bem o idioma e que isso não poderia ser um obstáculo. Não silenciei e ela percebeu que não estava falando com alguém que baixa a cabeça”, afirma.
Para além desse pequeno incidente, Paulo Victor mostra um ótimo trânsito em terrenos que vão além da academia e profissional. Frequentador assíduo da Tasca do Chico, no coração do Bairro Alto, é recebido com festa pelos donos da casa, com direito a mesa de honra. “Aprendi a amar o fado e é um lugar onde me sinto totalmente à vontade”, destaca.
Fã de música, Paulo Victor também circula nas noites de samba ou forró, cada vez mais comum na vibrante vida cultural da capital portuguesa. No último Carnaval, vestiu a camisa do Bahia. O tricolor soteropolitano, que hoje faz parte da rede mundial de clubes liderada pelo Manchester City, é seu time do coração. Paulo Victor chamou a atenção por onde passava no bloco, especialmente dos entusiastas do futebol e das festas carnavalescas de Salvador, capital da Bahia.
“Antes de nada, sou brasileiro. Mas hoje me sinto em casa em Portugal. O país me recebeu de braços abertos”, afirma. Paulo Victor já retribui a acolhida, ao criar conhecimento numa área de vanguarda dentro da universidade portuguesa.
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