Complexo Brasil: Um olhar sobre muitos brasis
© Pedro Pina

Complexo Brasil: Um olhar sobre muitos brasis

Entre obras de arte, vídeos, peças musicais e documentos, a Fundação Calouste Gulbenkian propõe uma experiência imersiva sobre os contrastes e a diversidade brasileira. A exposição complexo brasil pode ser visitada até fevereiro.
Publicado a

A Galeria Principal e a Galeria do Piso Inferior do Edifício Sede da Fundação Calouste Gulbenkian acolhem, até ao dia 17 de fevereiro, a exposição Complexo Brasil.

Dar a conhecer a complexidade de um Brasil feito de muitos brasis, alguns dos quais descobertos após um longo apagamento, é a proposta dos curadores José Miguel Wisnik, Milena Britto e Guilherme Wisnik.

Aberta ao público no passado dia 14 de novembro, a exposição reúne obras de vários formatos, desde salas imersivas a percursos originais, vídeos inéditos sobre potências e impasses da modernidade brasileira, documentos, textos e obras de artistas como Cildo Meireles, Jaider Esbell, Luiz Zerbini, Anita Ekman, Sandra Nanayna e Glicéria Tupinambá.

Daniela Thomas e Maristella Pinheiro são responsáveis pela cenografia e o projeto gráfico ficou a cargo de José Albergaria e Kiko Farkas. Paralelamente à mostra, são exibidos filmes e decorrem conversas, aula-show, entre muitos outros eventos.

Em entrevista ao DN Brasil, dois dos curadores, Milena Britto e Guilherme Wisnik, fazem uma apresentação e avançam com diversos aspetos sobre a exposição Complexo Brasil.

© Pedro Pina

O que representa o desafio de ser um dos curadores da exposição Complexo Brasil?

Milena Britto: Neste desafio, estão envolvidos três ‘c’: Compor, Convidar, Convencer. Num primeiro nível, a prática curatorial, ou seja, compor uma exposição que cobre séculos de cultura e de arte. O segundo nível, ou segundo ‘c’, está relacionado com o convite dirigido aos artistas. O terceiro, tanto envolve conquistar em relação ao conceito, como convencer o público do sentido da mostra.

Houve um processo interno, com imensas reuniões entre os curadores e, depois, entre nós curadores e a equipa da Fundação Gulbenkian.

Para compor esta prática curatorial, foi fundamental repensar o Brasil, rompendo com o olhar hegemónico erguido sobre um viés colonial. Temos uma nação composta por muitos séculos sobrepostos. Essas sobreposições estão sempre a encarnar os mesmos problemas e os mesmos estereótipos, criando uma nação que, apesar das diferenças, se

apresentava muita hegemónica. Então, o nosso desafio curatorial foi romper com essa hegemonia e não apenas recompor uma ideia de nação brasileira. Queríamos trazer uma composição cultural, artística, intelectual que, na verdade, problematizasse a própria ideia de nação no sentido unificado. Ou seja, apresentar um Brasil com toda a complexidade associada, mostrar que não existe uma nação ordenada, coesa, pacificada.

Queríamos trazer propostas e projetos que pudessem ampliar as formas de olhar. Foi um grande desafio pensar sobre que obras, que diálogos ou que trabalhos pudessem atingir este objetivo.

Entre nós, houve muita partilha. Foi uma experiência riquíssima, porque somos pessoas muito diferentes. Nós não estávamos a tentar, apenas, desconstruir um olhar e deixar no lugar outra proposta resolvida, mas, pelo contrário, desconstruir a ideia desse Brasil estereotipado e apresentar o que está sempre em movimento e se contradizendo.

Surgiu, depois, um dos desafios mais contundentes que foi convidar artistas que noutras ocasiões foram excluídos porque traziam perspetivas historicamente invisibilizadas, combatidas, negadas ou excluídas por uma ideia oficial de uma nação brasileira.

Por exemplo, alguns artistas veêm-se dentro de um trabalho de comunidade, como parte de um todo, envolvendo legitimação. Essas pessoas não vão simplesmente assinar um documento e dar autorização para expor uma obra. Primeiro, tem de haver uma conversa presencial. Há que aceitar e respeitar o processo da oralidade. Lidámos com algumas questões relacionadas com artistas indígenas ou obras que pertencem a comunidades. Nestes casos, tivemos de encontrar estratégias e dialogar com intermediários e várias outras pessoas da mesma comunidade. Foi um desafio de me tirar o sono. Fico muito comovida com as pessoas que protegem. Não tem como trazer certas obras e contar com certas presenças simplesmente enviando um e-mail. Não existe um agente, não existe uma galeria representando o artista e também não existe a noção de que a obra vai fazer parte de algo histórico. Por isso, foi uma grande conquista. Claro, algumas pessoas simplesmente não aceitaram, não foram convencidas no processo.

Outro aspeto que considero interessante tem a ver com a nossa proposta estética, no geral, de curadoria. Ou seja, o público não sucumbir à ideia de que estamos unicamente a desconstruir um valor colonial.

Aprendemos muito uns com os outros. Para mim, foi um processo muito enriquecedor em todos os sentidos. Como é que se combate essa ideia hegemónica? Como é que aponta os problemas, mas também as riquezas e como a história repercute para dentro e para fora?

Neste desafio, tem de se usar a razão, o conhecimento, a pesquisa, mas também a convicção e a segurança de cada um. Creio que cada um traz para o projeto curatorial aquilo em que acredita e que vivencia. Então, nesse sentido, penso que é tudo muito

orgânico. São propostas muito íntegras no sentido de compor, de apresentar, de não resolver, de deixar que as coisas falem por si próprias, de deixar que se revelem umas às outras, que se contradigam.

Tem muita pulsão de vida, de força, sem esconder toda a violência, as delicadezas de sobrevivência de cada grupo, as contribuições inimagináveis de pessoas oriundas de territórios totalmente distintos: do morro ao asfalto, do interior ao litoral, da mata às pistas, e ao mesmo tempo, com muito cuidado, trazendo nomes muito importantes e já legitimados da história oficial e da cultura brasileira. Alguns nem sequer foram considerados artistas, pois as suas estéticas não eram valorizadas simplesmente por uma questão de raça, classe social ou visão política.

Guilherme Wisnik: É um desafio com múltiplas esferas. Primeiro, fazer uma exposição desta magnitude numa instituição como a Fundação Gulbenkian, em Lisboa, na capital de Portugal, o país que colonizou o Brasil e que tem com o Brasil uma importante e longa relação histórica. Depois, o desafio de interpretar o Brasil de uma maneira ampla. A exposição não é estritamente de artes plásticas ou artes visuais. Tem também outras formas de arte.

Respondemos com a palavra “complexo”, porque o desafio foi muito complexo. O objeto em questão – o Brasil – é extremamente complexo, com uma combinação de razões históricas e de camadas culturais e sociais que não são possíveis de reduzir a uma leitura única ou unívoca.

© Pedro Pina

O que significa a exposição estar patente na Fundação Calouste Gulbenkian?

Guilherme Wisnik: Já viajo para Lisboa como turista desde a minha adolescência e sempre visito a Fundação Gulbenkian com um grande respeito e admiração. Mas, já antes de conhecer Lisboa, lia livros editados pela Fundação Gulbenkian, que sempre considerei como uma das mais sólidas e admiráveis instituições europeias, portanto é um local onde sempre desejei poder trabalhar. Além disso, como arquiteto, é um lugar lindíssimo que admito pela sua arquitetura e pela beleza dos jardins.

A Fundação Gulbenkian, desde o convite e durante todas as etapas, tem sido exemplar no sentido de garantir as melhores condições para que o trabalho seja desenvolvido, com um respeito máximo pelo trabalho da curadoria. É uma parceria muito forte no desenvolvimento das ideias. A qualidade do trabalho das equipas da Fundação Gulbenkian foi notória desde as viagens de pesquisa à relação com as instituições para os empréstimos das obras, bem como no processo de produção para a realização dos seis vídeos de curadoria.

O facto de a exposição estar patente na Fundação Gulbenkian faz toda a diferença. Enquanto curador em São Paulo ou na bienal de arquitetura de São Paulo, esta foi das melhores experiências que já tive na realização de exposições dentro e fora do Brasil.

© Pedro Pina

Que viagem é proposta através da visita à exposição Complexo Brasil?

Guilherme Wisnik: São muitas as viagens propostas. Uma das viagens é o percurso em que as obras vão sendo vistas, na parede ou no chão. São intercaladas com espaços onde o vídeo e a música têm papeis fundamentais. Existem, ainda, muitas viagens simbólicas oferecidas pelas experiências durante o percurso, que foi criado tendo em conta diferentes matrizes culturais: os povos indígenas, os africanos que foram escravizados e eram trazidos de África para o Brasil e os povos europeus, ocidentais. Estas três combinações são étnicas, culturais e artísticas, sendo apresentadas como caminhos, pontas de referências, de produções culturais que, no entanto, se aproximam umas das outras por uma série de pontos de contacto que a exposição vai mostrando. A ideia da exposição não é gerar isolamento ou estagnação, mas mostrar o quanto a cultura brasileira é dinâmica no trânsito ou no destino das muitas origens e presenças.

© Pedro Pina

Esta exposição não é uma simples mostra de objetos, mas sim uma travessia de experiências. De que experiências se tratam?

Guilherme Wisnik: Destaco os seis vídeos imersivos, que proporcionam experiências de travessias. O vídeo introdutório da exposição mostra as maravilhas e os descalabros desse povo, dessa história tão sofrida e opressiva, mas ao mesmo tempo criadora de caminhos libertários e de manifestações, de aparições, de fulgurações, de beleza na formação de um povo muito singular. Com diversas referências musicais brasileiras, o espectador visualiza imagens desde a beleza suprema à destruição da floresta, desastres ecológicos ou crimes ambientais e sociais. Outro vídeo aborda a escravatura de uma forma muito objetiva, havendo referência a Portugal como o primeiro país a escravizar povos africanos e levá-los em grande quantidade para as suas colónias no Brasil. O vídeo sobre Brasília é baseado no texto de Clarice Lispector e mostra o urbanismo moderno na periferia do capitalismo. Há também um vídeo sobre a Amazónia e outro dedicado a uma escola de samba.

© Pedro Pina

A exposição incide muito no colonialismo. Este é ainda um tema controverso? Como é encarado nos dias de hoje?

Milena Britto: Se é um tema controverso… depende de quem chega para o diálogo. Diria que para as pessoas que não precisam reconduzir o olhar ou o seu lugar no mundo, é um tema que não suscita assim tanto interesse. Já para todas as outras pessoas ou

representantes de grupos que foram apagados, excluídos, violentados, alterados na sua rota de vida e cujas consequências ainda permanecem no presente, é um tema que vai sempre chegar.

É um tema presente no Brasil contemporâneo, na América Latina e em países africanos. Não há como não ser dessa forma e foi o que procurámos fazer com esta exposição. Mas, não procuramos fazer da exposição um tribunal, porém também fizemos questão de não tapar o sol com a peneira. Pretendemos revelar fissuras que mostrassem aquilo que a história oficial não mostra, sem qualquer tipo de julgamento, através de diversas obras diretamente representativas do período colonial e obras que dão uma perspetiva desconstrutiva. O conjunto é muito interessante, especialmente para alguns grupos que ainda sofrem consequências do colonialismo.

A história oficial é uma história de exclusão, de violência. Então, para todos nós nos conhecermos e reconhecermos, deveríamos visitar esse período com outros olhos. Trata-se de um processo de reconhecimento, de como a história colonial organizou o mundo, apagando, invisibilizando, dizimando, desprezando certas contribuições culturais e artísticas. A ideia passa por revisitar para nos completarmos e questionarmos ‘como é que o povo brasileiro se vê dentro dessa história que excluiu tanto, que apagou tanto e que violentou tanto?’. E, ao mesmo tempo, faz parte da força de sobrevivência. É também uma forma de pensar como é que o mundo seria se não houvesse esse apagamento e desconhecimento.

A história oficial não é só política, mas das artes, da cultura. Visitar esse período e aprender sobre aquilo que ficou de fora porque, na altura, era considerada sem valor.

No geral, temos um grande desconhecimento de muitas obras, de expressões artísticas, de movimentos estéticos, de propostas de composição e de representação, que são magníficas e que ficaram desconhecidas porque, como disse, no mundo contemporâneo há resquícios muito difíceis de combater. Vivemos numa suposta democracia que tem as mesmas estruturas, as mesmas estratégias de silenciamento, então a obra de arte pode fazer muito mais do que um discurso e as obras em diálogo umas com as outras podem se complementar, brigar, contradizer ou se juntar em certos temas ou movimentos.

© Pedro Pina

Em simultâneo à exposição, vão decorrer várias atividades. Que atividade gostaria de destacar?

Guilherme Wisnik: Destaco a conversa musical Brasília, onde eu, Adriana Calcanhoto e o arquiteto Nuno Grande vamos conversar sobre Brasília enquanto grande experimento histórico e cultural. Durante a conversa são projetadas imagens intercaladas com músicas. Adriana Calcanhoto vai fazendo referências acerca da história da música popular brasileira, de forma a potencializar o que é dito a propósito de Brasília, inclusive o ataque ao Palácio do Planalto no dia 8 de janeiro de 2023.

© Pedro Pina

Também será lançado o livro Catálogo – Complexo Brasil. Poderia fazer uma breve apresentação da obra?

Guilherme Wisnik: Em vez de lançarmos um catálogo de exposição com as peças expostas, decidimos editar um livro com textos críticos, porque é melhor para alimentar a pesquisa e as ideias. Tem a particularidade de ser um livro monetariamente mais acessível ao grande público e, por isso, poder circular muito mais, o que não acontece com as edições de luxo.

José Albergaria e Kiko Farkas são os designers responsáveis por este livro que tem textos de cada curador, onde são desenvolvidos aspectos que consideramos pertinentes. O meu pai, José Miguel Wisnik, é o curador geral e responsável pela organização, que assina o primeiro texto do livro num estilo ensaístico interpretativo, focando os temas cruciais e os fundamentos dos problemas que são levados à exposição. Além dos curadores Guilherme Wisnik, José Miguel Wisnik e Milena Britto, assinam textos Eliane Brum, Rafael Xucuru-Kariri e Suzane Lima Costa.

No geral, quais as expectativas para a exposição Complexo Brasil?

Guilherme Wisnik: As expectativas são as melhores possíveis. Tendo em consideração o trabalho desenvolvido, mas também pela respeitabilidade da Fundação Gulbenkian, há a perspetiva de que esta exposição possa contribuir fortemente na leitura que se faz do Brasil, esse país que é um experimento histórico, sociocultural, de violência e de dominação, mas, ao mesmo tempo, um país de fermentação, de uma maneira singular de se viver, na qual o choque de culturas produz emancipação, alegria, não no sentido raso, mas no sentido da invenção, de modos de vida e de aparecer cultural, com muito a ensinar a outros povos cuja história é mais baseada no desenvolvimento económico ou no cálculo da racionalidade técnica instrumental.

A exposição dá a possibilidade de conhecer uma perspetiva de generosidade em relação ao Brasil e ao seu povo, gente que hoje também mora em Portugal. Há uma grande colónia de imigrantes brasileiros em Portugal que querem brilhar e serem felizes, seja no Brasil, seja em Portugal ou em qualquer outro lugar do mundo, e têm esse direito.

Diário de Notícias
www.dn.pt