Anatomia da detenção de uma advogada: de uma mala nas medidas da Ryanair a uma noite algemada na polícia
Era para ser mais uma viagem normal, do Porto para Madri, mas se transformou em um pesadelo. A viagem para participar de um congresso não aconteceu - e a noite terminou na delegacia.
Tudo começou na noite da última terça-feira, quando a advogada brasileira Priscila S. Nazareth Ferreira fazia o embarque pela Ryanair, rumo à Cúpula Internacional ICAM 2025, na capital espanhola. A mala estava despachada, sendo que a passageira levava na mão apenas um saco de academia maleável.
"Apresentei meus documentos e logo a funcionária alegou que a minha mala não estava nas medidas. Como já havia feito a conferência da bagagem nas partidas, insisti para que observasse a mala do medidor, mas a funcionária insistiu que eu deveria pagar uma taxa de 75 euros", conta Priscila ao jornal.
O mesmo relato está na queixa apresentada à Polícia de Segurança Polícia Pública (PSP), a qual o DN Brasil teve acesso. Diante da negativa da funcionária em aceitar a mala, a brasileira disse que chamaria a polícia para averiguar a situação da mala - e assim o fez. O mesmo foi feito pela funcionária da companhia aérea, que também acionou as autoridades policiais.
O embarque aconteceu, mas logo foi informada que a polícia estava à sua procura. "Eu expliquei que chamei a polícia, mas que já considerava a situação pacificada", disse. Mas não resolveu. "A polícia me hostilizou, gritaram comigo, puxaram minha mala, enquanto eu suplicava para ser ouvida e identifiquei-me verbalmente como advogada", relata. "A condição era hostil e estavam me machucando, um policial rasgou a minha blusa e deixou meu seio exposto", complementa.
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Priscila foi levada a esquadra (delegacia) do aeroporto, onde conta que ficou mais de três horas algemada. "Pedi diversas vezes que tirassem as algemas, que nada poderia fazer e que não tinha intenção de ferir qualquer pessoa". De acordo com a advogada, deu uma mordida na mão de um dos agentes quando estava no aeroporto "em legítima defesa" quando "levou um golpe no tornozelo" e achou que teria o cotovelo quebrado. Segundo com regulamentação oficial, o uso de algemas para imobilização é indicado somente em caso de risco de fuga, perigo à integridade física do agente ou terceiros.
A advogada ainda alega que só pode fazer a ligação de direito após três horas, quando foi autorizada a ligar para o marido. "Também não pude fazer contato com a Ordem dos Advogados (OA) e com a embaixada, não me permitiram o direito de apresentar queixa, nem ler o meu auto de detenção. Se eu estou sendo acusada de algo, eu tenho direito de ver o que é", destaca.
Segundo Priscila, vários dos seus direitos não foram assegurados durante a detenção. O DN Brasil questionou a PSP sobre o assunto, mas não teve resposta. "A conduta da polícia pareceu um caso de humilhação gratuita, misoginia, desrespeito à honra, dignidade, integridade física de uma cidadã altamente respeitada na sociedade e entre seus pares. Se a polícia se a fazer isso com uma advogada, o que não faz a um cidadão desprovido do conhecimento da lei?", questiona a brasileira.
Logo após ser liberada, Priscila fez uma live no Instagram em que contou detalhes do que aconteceu. "A polícia tem todo o direito de usar a força, se a pessoa que está na condição de detido, oferecer resistência. No momento em que a polícia chegou, eu apenas pedi para ser ouvida, eu disse que eu liguei, insisti aos berros", detalha.
No dia seguinte, Priscila teve que comparecer ao tribunal e contou ao Ministério Público (MP) sobre o que aconteceu. A advogada pediu um adiamento do processo, para ter tempo de "reunir provas". Segundo a brasileira, pessoas que estavam no local filmaram o ocorrido. Depois de sair do tribunal, a profissional foi até à PSP para prestar uma queixa contra os policiais e, por fim, passou por exames médicos no Instituto Médico Legal (IML). A imigrante fez diversos vídeos nas redes sociais, com objetivo de alertar sobre a situação.
Priscila afirma que está agora comprometida em divulgar os direitos dos demais clientes, que, como ela não podem estar sujeitos às praticas abusivas da companhia. "Eu ja viajei por mais de uma ocasião pela Ryanair com a mesma mala, e já a utilizava até mesmo como garantia de não ter qualquer problema no embarque. Até mesmo numa viagem com minha filha a Madrid ano passado essa foi a mala da minha Gabi. E não houve qualquer embaraço. Todas as low cost devem obedecer a lei. E a bagagem de mão em condições razoáveis de tamanho é um direito de todo passageiro, como já decidiu o Tribunal de Justiça da União Europeia no acórdão C487/2012", ressalta.
O que diz a companhia
Procurada pelo DN Brasil, a Ryanair alegou que a cliente se recusou a inserir a bagagem no medidor. "A passageiro em questão adquiriu uma tarifa básica para o voo entre Porto e Madrid, operado em 3 de junho, a qual permite o transporte gratuito de uma mala de mão de dimensões generosas (40 x 20 x 25 cm). Durante o processo de embarque, no Aeroporto do Porto, o passageiro foi solicitado pelo agente de portão a colocar a bagagem no medidor apropriado, o que foi recusado. Em razão da recusa e do comportamento posteriormente disruptivo, foi necessária a intervenção policial e o passageiro foi retirado do voo. O caso encontra-se agora sob responsabilidade das autoridades locais. A Ryanair adota uma política de tolerância zero em relação a comportamentos inadequados a bordo e continuará a tomar todas as medidas necessárias para assegurar que seus passageiros e tripulantes viajem em um ambiente seguro, respeitoso e livre de perturbações."
Advogados se pronunciam
A Associação dos Advogados Estrangeiros em Portugal (AAEP) emitiu uma nota de repúdio nesta sexta-feira. "A AAEP, no cumprimento do seu dever de defesa intransigente das prerrogativas da advocacia e da dignidade profissional dos seus membros, vem, por este meio, manifestar o seu profundo repúdio pela conduta abusiva adotada por agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP) no Aeroporto Francisco Sá Carneiro, na cidade do Porto, durante a madrugada de 4/6/2025. Foi reportado que uma Advogada, identificada como tal, foi detida sem que lhe fosse facultado o direito de contactar um colega de escala ou qualquer defensor, como impõe o Código de Processo Penal e o Estatuto da Ordem dos Advogados. Mais grave ainda, a referida profissional foi *algemada por um período de aproximadamente quatro horas, em situação desproporcional e vexatória, com sua vestimenta rasgada, seio seio exposto, tendo **sofrido lesões corporais* decorrentes da atuação policial e *tido as suas vestes rasgadas em resultado da truculência com que foi conduzida pelos agentes*. A atuação da PSP, ao tomar conhecimento da qualidade profissional da cidadã e, ainda assim, manter tratamento indigno e ilegal, *configura clara violação das prerrogativas previstas no artigo 87.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, que garante a todo advogado o direito de ser tratado com respeito e urbanidade pelas autoridades públicas, **dentro e fora do exercício da profissão*. Lembramos ainda que, nos termos dos artigos 85.º e seguintes do mesmo diploma legal, compete à Ordem dos Advogados intervir em todas as situações que ofendam a honra, dignidade ou independência dos seus membros no exercício da advocacia, ou por causa dela, promovendo as medidas jurídicas e disciplinares cabíveis contra tais condutas. Assim, *expressamos total solidariedade à Colega lesada, Advogada Dra. Priscila S. Nazareth Ferreira, e exigimos o imediato apuramento dos fatos e responsabilização dos agentes envolvidos*, sem prejuízo da comunicação ao Ministério Público para os devidos efeitos criminais e disciplinares. A Advocacia não se vergará à arbitrariedade. O respeito pelas garantias fundamentais e pelas instituições democráticas não é opcional — é dever de todos".
amanda.lima@dn.pt