"A democracia é uma forma de vida"
O livro Democracia em Movimento, no evento Duetos - Diálogos Além-Mar, promovido pelo Fórum de Integração Brasil-Europa (FIBE).
A brasileira Paula Macedo Weiss tem mestrado e doutorado em direito pela University of Tuebingen. Está em Lisboa hoje para lançar seu novo livro Democracia em Movimento, no evento Duetos - Diálogos Além-Mar, promovido pelo Fórum de Integração Brasil-Europa (FIBE). Paula estará ao lado da ativista portuguesa Myriam Taylor para falar sobre a obra. Quem vai mediar o debate é a brasileira Mirna Queiroz, diretora da fundação Kees Eijrond. A fundação será o local do evento, marcado para às 18h e aberto ao público. Haverá também transmissão online. O DN Brasil conversou com Paula à respeito do livro.
Qual foi a inspiração para escrever o livro?
“Democracia em movimento” é uma compilação de ensaios publicados durante um ano e meio, de janeiro de 2021 a meados de 2022, na “Revista Pessoa”, da genial Mirna Queiroz. Acho que este livro tem tudo a ver com a minha biografia. Eu nasci no auge da ditadura civil-militar brasileira. Meu pai foi, durante esse período, um político da oposição e eu pude vivenciar muito de perto a luta pela redemocratização e a retomada da democracia e da cidadania plena com o advento da Constituição cidadã. Essa história, como inúmeras outras, nos lembra que preservar a memória é também uma tentativa de não deixar escapar o futuro. Aprendi desde a tenra infância que democracia é um sistema que exige muito de todos nós, que ela nunca está garantida e que é uma batalha diária. Com experiências pregressas, aprendemos e moldamos a identidade coletiva e a cidadania de uma nação. Meu passado me obriga, eu diria. Desde 2018, frente a essa onda populista de extrema direita que vem se alastrando pelo mundo, tenho me engajado pela democracia em diferentes frentes e linguagens artísticas: através da literatura com o lançamento de “Entre nós”, meu primeiro livro, e agora de “Democracia em movimento”, de projetos culturais e mais recentemente como cofundadora do chamado Netzwerk Paulskirche, uma rede de intelectuais e atores da sociedade civil alemã, que visa a incentivar a participação política e criar experiências democráticas positivas no cotidiano. Entendemos que democracia não é apenas um regime político, mas sobretudo uma forma de vida, e como tal dever ser experienciada dia a dia por todos os membros de uma sociedade. Essa utopia é sem dúvida a minha maior inspiração.
Você screve sobre democracias plenas. Qual país considera que possui uma democracia plena?
Segundo o último índex da Democracia da “Economist” de 2023, essa foi a primeira vez desde a introdução desse levantamento, em 2006, que a pontuação global média caiu para o seu nível mais baixo. Menos de 8% da população mundial vive numa democracia plena, enquanto mais de 40% vivem sob um regime autoritário. O restante vive em democracias falhas ou em regimes híbridos. Para mim essa constatação é um marco divisor; por um lado é assustadora e por outro desafiante. No nível pessoal, entendo essa constatação como um chamado à ação. Para mim é revoltante pensar que somente poucas pessoas vivem num ambiente em que seus direitos fundamentais são assegurados, onde suas liberdades estão garantidas, onde minorias são acolhidas e respeitadas e a diversidade prevalece. O grande desafio nos dias de hoje é garantir a heterogeneidade numa democracia. É isso que pressupõe uma democracia plena: pluralidade, liberdade, igualdade, inclusão, participação política, responsabilidade social individual e coletiva. Isto posto, eu considero a Alemanha um país com uma democracia plena, apesar das crescentes dificuldades. O Estado alemão é um Estado Democrático de Direito que garante a existência de todos e assegura as liberdades democráticas e os direitos fundamentais dos seus cidadãos. O Brasil é uma das maiores democracias liberais do mundo. A nossa Constituição de 1988 dispõe de todos os instrumentos e mecanismos necessários para a compleição da democracia e para o exercício da cidadania plena. Porém temos questões estruturais e institucionais gravíssimas, ligadas à nossa responsabilidade colonial histórica. Se quisermos vencer como sociedade democrática, precisamos diversificar as nossas memórias e as nossas estruturas de poder. Precisamos fazer um resgate e uma reparação profunda. Como eu mencionei anteriormente, a democracia só é plena se for heterogênea, plural, justa e incluir todos os cidadãos de uma sociedade. A democracia deveria ser a prática da justiça, e não há justiça sem a participação de todos.
Considera que a democracia hoje está em perigo. Por quê?
No contexto geopolítico o perigo reside nessa onda populista de extrema direita que está mundialmente organizada e orquestrada. Há uma interdependência das democracias iliberais, uma tendência ao nacionalismo transnacional, que está se tornando cada vez mais difundido nos últimos tempos. Já sabemos o que o fascismo faz com a sociedade e não podemos deixar que o passado se torne presente e muito menos futuro. Deveríamos aprender com as rupturas históricas e nos fortalecer como sociedade. Mas isso pressupõe coragem: exige de nós diálogo e participação na moldagem da massa social. Em uma democracia plena o debate público é essencial. Suportar a prática coletiva do dissenso, este conflito fundamental, no qual as pessoas pensam, criticam, indagam, querem e agem de forma diferente, é inerente à democracia é fundamental para que ela continue em movimento. A democracia não é dada, ela tem que ser construída diariamente e, portanto, não podemos mais nos privar de discussões essenciais no seio de uma sociedade pluralista e diversa, como representatividade e lugar de fala de uma parcela significativa da sociedade global. Nosso erro como humanidade foi abandonar pelo caminho muitas pessoas, invisíveis nos seus anseios e angústias. A extrema direita visa na sua ideologia homogeneizar a sociedade, um movimento totalmente contrário à lógica democrática. A homogeneidade é, sem dúvida, o grande inimigo de uma sociedade democrática.
Tenho conversado com muitos intelectuais no Brasil e a visão não é animadora, mesmo que a tentativa de golpe no 8 de janeiro tenha sido frustrada. Até onde você acha que foi a extensão dos prejuízos?
Quatro anos de governo Bolsonaro foram suficientes para desmantelar valores fundamentais da democracia: ele pisoteou a divisão tripartite de poder entre o executivo, o legislativo e o judiciário. O exemplo inimaginável disso foi o "orçamento secreto", por meio do qual ele "comprava" o legislativo e o alinhava, excluindo a ordem pública. Sua permanente desconsideração e confronto com a mais alta corte, o Supremo Tribunal Federal, enfraqueceu de modo geral o respeito pelos tribunais e perturbou o chamado "sistema de checks and balances". De acordo com sua lógica, ele era legitimado pelo povo e os tribunais apenas o impedia de atingir seus objetivos. Pura alucinação de uma mente despreparada e autocrática; esse pensamento não tem nenhum amparo legal, muito pelo contrário, fere diretamente os nossos valores constitucionais. Além disso, Bolsonaro constantemente desconsiderou e feriu os direitos fundamentais de uma grande parcela da população, atacou como pôde as minorias e destruiu grande parte da nossa massa biológica. Tentou nos roubar um futuro justo e plural, sem querer ser dramática. Bolsonaro deixou sequelas purulentas na nossa sociedade. O 8 de janeiro de 2023, quando os Três Poderes em Brasília sofreram ataques golpistas por apoiadores do ex-presidente, nos lembramos constantemente que a situação permanece instável, seus aliados estão na ativa, conjurando. Não podemos nos dar ao luxo de pegarmos atalhos, a democracia urge um trabalho árduo de todos nós. Ademais, tenho plena confiança na nossa Constituição e no nosso judiciário.
Como você analisa a situação da Alemanha hoje, onde o extremismo está em ascensão?
Bastante preocupante. Porém, vejo essa ascensão também num cenário global, a Alemanha não está sozinha nessa tendência. Mas isso não justifica unicamente a crescente aceitação do partido AFD, de extrema direita. O que no início era um voto de descontentamento ou de protesto passou a ser agora um voto por convicção. Essa mudança de motivação é para mim decisiva e assustadora. Estamos diante de uma ameaça real contra a ordem livre e democrática.
Ainda sobre a Alemanha, há uma discussão sobre os efeitos de uma possível proibição da AFD e movimentos semelhantes. Alguns temem que o resultado seja o oposto, ou seja, dar ainda mais força a esses movimentos. Qual a sua visão?
A Alemanha dispõe na sua Constituição de mecanismos muito eficazes de proteção à democracia. É o caso do Bundesamt für Verfassungschutz, serviço de inteligência que tem como missão proteger a Constituição, observar os perigos e riscos à ordem constitucional. E nessa tarefa investiga, por conseguinte, aglomerações, associações e partidos que ameacem na sua ideologia, suas metas ou conduta a ordem constitucional e democrática, e junta, se necessário, provas para fundamentar um devido processo legal de inconstitucionalidade, segundo o Art. 21 § 2 da Constituição alemã (Grundgesetz), de competência exclusiva do Bundesverfassungsgericht (Supremo Tribunal Constitucional). No caso concreto da AFD, o Verfassungsschutz vem investigando a tendência subversiva deste partido e uma discussão pública sobre uma eventual inconstitucionalidade está em curso. Porém, temos que estar cientes que só temos uma tentativa, ou seja, se nessa batalha legal não houver provas suficientes para essa classificação, eles continuarão na ativa fortalecidos como vencedores e a democracia sofrerá danos profundos. Seria um tiro pela culatra.
Essa democracia em crise - ou crise da democracia - verificou-se na última eleição europeia? O centro democrático sobreviveu, apesar do “susto”.
A última eleição europeia escancarou a tendência da extrema direita, porém demonstrou que a democracia “viva” dispõe de mecanismos de defesa e que nós democratas ainda somos a maioria. Não vejo uma crise na democracia, mas democracias em crise. No entanto, é na crise que reside a nossa chance. Rainer Forst, um dos maiores filósofos da atualidade, afirma que “crises não são alheias à democracia, antes ela vive disso, da superação de bloqueios sociais por meio de processo de entendimento coletivo”. Acredito que há um caminho comum, apesar das brumas.
amanda.lima@dn.pt