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Opinião. A vida entre aspas: a realidade ortográfica do imigrante em Portugal
Photo by Sergey Zolkin / Unsplash

Opinião. A vida entre aspas: a realidade ortográfica do imigrante em Portugal

"Portugal é também a minha casa. Mas, como creio que muitos sentem, é uma casa limitada. Para além dos T1 e T0 apertados e seus alugueis disparatados, é uma “casa” limitada pelas aspas do cotidiano da realidade do imigrante em Portugal"

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por DN Brasil

Texto: Luisa Cunha

Presenciei, na fila da imigração do aeroporto de Lisboa, o seguinte diálogo durante a checagem dos passaportes para saída do país: O agente pergunta gentilmente à senhora: “E para onde vais?”, ao que ela prontamente respondeu: “Vou para casa!”. Em retruque, o agente lhe diz: “Mas a senhora não vive em Portugal?” Tomando-lhe o título de autorização de residência das mãos, completa: “Então, aqui é sua casa.”

Instantaneamente, uma interrogação brotou no meio da testa da passageira, que identifiquei pelo passaporte como brasileira. Ela então, um pouco melancólica, põe fim à conversa e diz: “Tem razão, mas o coração fica dividido.” O carimbo estampa no passaporte a dúvida de seu rosto, e ela segue viagem.

Dali em diante, durante todo o meu trajeto, não pude deixar de partilhar da interrogação contagiante que havia presenciado. Afinal, Portugal é também a minha casa. Mas, como creio que muitos sentem, é uma casa limitada. Para além dos T1 e T0 apertados e seus alugueis disparatados, é uma “casa” limitada pelas aspas do cotidiano da realidade do imigrante em Portugal.

Por todo lado, nos serviços do Estado, na mercearia, no trabalho, invocando aqui a voz daqueles que integram os países da CPLP, falamos “português”. Vivemos a receber olhares cruzados, por vezes inofensivos, mas, outras vezes, desdenhosos, seguidos de uma constatação instantânea: “Ah... (pausa) a menina é brasileira!” E pronto, está rotulado.

Daí em diante, seguem dois caminhos: o tratamento diferenciado, por vezes raivoso ou ríspido, ou as curiosas imitações jocosas do sotaque, acompanhadas da pergunta que não cala: “E a menina, gosta de viver em Portugal?”

A essa pergunta, sempre respondo: “Não sei dizer, ainda não tive oportunidade de me sentir parte daqui para poder avaliar.” Talvez uma resposta dura ou filosófica demais, mas fiz dela a minha missão, como forma de espalhar a semente de reflexão, uma a uma, durante todas as curtas interações. Uma coisa essa resposta sempre me proporciona: o silêncio do outro lado.

Acredito que, para o português ou para quem já consegue se sentir parte da comunidade nativa daqui, é impossível não gostar de morar em Portugal. Afinal, mudamos para cá em busca de algo melhor, diferente. E, se cá permanecemos, é porque o encontramos, certo? Ou será que o imigrante, seja ele quem for, carrega em si a teimosia de fazer funcionar seu novo plano de vida?

O fato é: não é só a nossa língua que carrega aspas. Além de falarmos “português”, mesmo com a cidadania concedida, ainda assim somos “cidadãos”. O documento, embora resolva a tensa passagem pela imigração — sempre enervante, ainda que tenhamos todos os papeis em dia e em mãos —, não sana a exclusão e a rotulação diária que o imigrante enfrenta em Portugal.

A cada passo da chegada, desde a dificuldade para conseguir o NIF nas filas intermináveis, à discriminação inegável para conseguir um aluguel — um inquérito aponta que mais de 90% dos brasileiros relatam essas barreiras ao buscar habitação —, fica claro que não fazemos parte. Não somos de cá, não há espaço, e, se cá estamos, tomamos algo que não nos é de direito: o emprego, a casa, a vaga na universidade ou, ainda, o marido. Ah, quem nunca ouviu as histórias do “homem inofensivo e inocente”, tomado nos braços e forçado a deixar a família portuguesa, que é entregue como herança a toda mulher brasileira imigrante em Portugal?

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Tenho a sensação de que a única parte da vida do imigrante sem aspas são mesmo os impostos. Esses pagamos em pé de igualdade e em grande quantidade. Apenas a comunidade brasileira, que já soma em 2024 mais de um milhão de habitantes, registrou no último ano uma contribuição de 36% dos valores totais injetados na previdência do país pela comunidade imigrante, chegando a 1,03 bilhões de euros.

E veja bem, não reclamamos de pagar. É correto, deve ser feito, e não há o que se discutir quanto à igualdade nos impostos. O que buscamos é retirar as aspas e limitações de integração nos demais campos da vida do imigrante em Portugal e também dos benefícios e retornos àquilo que contribuímos.

Diz-se muito que Portugal precisa dos imigrantes, mas acredito que essa frase também é um tanto dura e contribui para a fenda, cada vez mais profunda, entre imigrantes e portugueses. Os imigrantes também precisam de Portugal. Deveríamos buscar uma relação de simbiose. 

Quem aqui está, não veio amordaçado, como supostamente foram para o Brasil os homens de Bragança. É por livre e espontânea vontade que escolhemos deixar para trás as dificuldades e diferenças culturais, colocando na mala as saudades e os sonhos, para construir um futuro em solo lusitano.

E sinto lhes revelar, aos amigos portugueses, aos quais tenho tanto carinho: se aqui não ficamos, não é por sermos seres parasitários, como também já ouvi dizer — “vêm, juntam dinheiro ou se formam e vão embora” —, mas porque não encontramos aqui uma forma de corrigir essa mania ortográfica feia que muitos possuem de colocar as malditas aspas no nosso português, no nosso status legal, nos nossos descendentes que nascem aqui, mas ainda assim são vistos como filhos de outro lugar ou outra nação.

Se o imigrante considera Portugal “casa”, é porque, apesar do mundo novo que há por cá, não conseguimos o principal: nos sentirmos parte de uma comunidade. Não é apenas segurança, emprego, oportunidades de crescimento, experiências ou formação que se busca ao imigrar. O que se deseja é integrar-se a um novo mundo, conhecer e contribuir para a comunidade que nos cerca.

Você se sentiria confortável em criar raízes e contribuir para uma nação que diz que você é igual, mas lhe trata como “igual”?

Foto: Claudio Noy

Luisa Cunha é advogada e imigrante brasileira radicada em Portugal há três anos. Coordenadora do Projeto "Duetos" e membro da equipa do FIBE, é pesquisadora nas áreas de direitos humanos, cooperação internacional e gestão de ONGs.

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