"Os imigrantes querem ser cidadãos, não necessariamente ter a cidadania impressa em papel".
"Os imigrantes querem ser cidadãos, não necessariamente ter a cidadania impressa em papel".Foto: Reinaldo Rodrigues

Opinião. Loteria do nascimento

"Temos de se voltar a separar os conceitos dos documentos físicos"
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Texto: Luísa Cunha

A sorte que se tem de ter, nos dias de hoje, para sentir-se um cidadão neste mundo suspeito que seja quase a mesma daquela que se espera de um ganhador da Euromilhões. É a loteria do nascimento, onde a cor do seu passaporte determina o nível de nervosismo e desrespeito a ser esperado quando se decide atravessar alguma fronteira, ainda que a passeio — e o nível de acolhimento e participação cidadã disponibilizado se quiser construir sua vida em outro país.

A sociedade retrocede a cada passo à direita, retornando ao conceito de cidadania amarrado pelas fronteiras artificiais e se afasta da noção cidadã participativa, aquela de formação da vontade coletiva de maneira partilhada, utilizando o espaço público como uma piscina harmoniosa de diferenças em prol do bem comum e da construção daquilo que todos almejam: uma nação mais forte, coesa e desenvolvida.

Os imigrantes querem ser cidadãos, não necessariamente ter a cidadania impressa em papel. Carta nenhuma da AIMA é capaz de me tornar portuguesa — e errados estamos nós se ansiamos somente por este papel, e errados estão eles se acham que este é nosso único desejo. E o pior: a longo prazo, se o conceito de cidadania não é preenchido em cada imigrante, é previsível que o desejo inicial de pertença acabe se rebelando em forma de mágoa. Temos de se voltar a separar os conceitos dos documentos físicos. 

Há uma frase, se não me engano, de Martin Luther King, que deveria estar estampada pelos muros da Europa, em que ele diz: “Antes mesmo de terminar o café da manhã, você já dependeu de mais da metade do mundo.” Uma tradução simples que mostra a relação de mutualismo esperada de uma sociedade globalizada — não só pelos meios digitais e cadeias de produção, mas pela mão de obra ativa que mantém os serviços da mais variada gama de um país, principalmente de Portugal, de pé e funcionando.

Acredito que ninguém que esteja por aqui seja contra o controle de fronteiras. Todos entendemos os mecanismos de oferta e procura, e quem vive no país entende muito bem as dificuldades de emprego, moradia e sente no mercado e no bolso as oscilações de um desequilíbrio populacional. Mas não é mais sobre ordem. Essa bandeira foi manchada por aqueles que usam as aflições populares como discurso para carreira política.

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Por que não é possível lutar por melhores políticas de imigração sem difundir o ódio? Por que não se pode fazer um controle de fronteiras sem esquecer que somos todos, ao fim do dia, humanos? Reforçar a noção de “imigrante de bem” coloca mais barreiras do que os balcões nos aeroportos. Atribuir a cada um a possibilidade de determinar aquilo que considera “de bem” sem disseminar constantemente a preservação da imagem humana e igualitária de todas as culturas e nações é abrir portas para a validação de discursos bárbaros de supremacia racial. 

Não existe cidadão ou imigrante “de bem”, existem pessoas implorando pela chance de fazerem parte de Portugal, para serem verdadeiramente cidadãs portuguesas. E existem aqueles que precisam se afirmar melhores, como deuses das fronteiras de um “paraíso” que, ao fim e ao cabo, é um país em frangalhos. Então, sim, vamos organizar a casa, mas entendendo que é uma casa plural, com muito mais a ganhar se mantiver essa diversidade. É repassar a ideia de que políticas de imigração não validam qualquer discriminação, não só para você, mas para qualquer um no seu país. Se não tivermos a plena certeza de que esse entendimento é geral, não há caravela que impeça de se afogar em hipocrisia e não há chave ganhadora desse mundo que te dê a plena certeza de segurança se formos apostar a humanidade como jogo de loteria. 

Portugal não precisa de pulso firme político, precisa de novas lentes sociais. E digo com plena segurança: que o país tem muito a aprender com outras culturas, principalmente a brasileira, no que diz respeito a diálogos e debates sociais. Estão, não só a milhas marítimas, mas a anos-luz de distância, do Brasil quando o assunto é conscientização sobre desigualdades, xenofobia, racismo e tantos outros temas neste caminho. E não digo isso, por favor, desmerecendo Portugal, mas é natural que o Brasil, pela sua dimensão, diversidade e própria história, tenha tido de enfrentar esses temas mais cedo e com maior urgência, o que consequentemente nos levou a sermos mais “evoluídos” — embora atualmente não pareça — neste campo.

Acho que então este texto é um convite para mudarmos a trajetória, da casa de apostas para o oculista. Será que Portugal, dentre tantos maiores desafios, não está cansado de tolerar imigrantes? Tolerar pressupõe um esforço contínuo, não só para comprovar uma independência (impossível) do próximo, como também para se impor (por meios inexistentes) a uma cultura diferente da sua. Não é hora de abraçar as diferenças? Aprender? Acolher?

Cidadania deveria ser — e o é — um conceito baseado em valores comuns e compromissos éticos. A noção da cidadania atrelada a direitos e deveres não deve ser esquecida, afinal vivemos todos com pé no chão onde há a presença de um estado, normas a serem cumpridas e impostos a serem pagos, documentos a serem apresentados. Mas estamos a um fio de perder o controle da mistura de discursos, estamos a um número errado na cartela entre ganharmos juntos e perdemos todos. 

Termino reforçando que abarcar o novo não é esquecer suas origens, é expandir o seu horizonte para o mundo, deixar cair os muros impostos por sua criação moral e pelos valores que lhe foram atribuídos por um contexto social e econômico. EXPANDIR. Não jogar fora. Não diminuir. Não fragilizar. EXPANDIR. Portugal não é uma nação que buscou por décadas expandir-se? Não têm no sangue o desejo por um novo mundo? Pois ele está a passos de distância, dentro do seu próprio país. Icem as velas.

*Luisa Cunha é advogada e imigrante brasileira radicada em Portugal há três anos. Coordenadora do Projeto "Duetos" e membro da equipa do FIBE, é pesquisadora nas áreas de direitos humanos, cooperação internacional e gestão de ONGs.

O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil.
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